quarta-feira, dezembro 23, 2009

Ciao

E daqui de cima dá para ver ele partindo, mais uma vez partindo, jogou todas as malas que podia no banco de trás e agora vai seguir sozinho. Não deve ir longe, mas não deve ficar por perto - cada vez que vai, deixa aqui um pedaço de si, um pedaço daquilo que foi enquanto se arriscava pelas ruas escuras da cidade, noite atrás de noite. Está indo porque assim se sente livre, assim consegue respirar, gosta de sentir o cheiro das montanhas que cortam o horizonte, o vento que entra pelas frestas das janelas abertas e o som da música que se mistura com o som da aceleração, da velocidade. Não tem dia para voltar – talvez nunca mais volte – e carrega consigo folhas para escrever sua saudade, mapas para poder se perder no caminho e o maior sentimento do mundo. Este, que ele chama de liberdade.

Bon voyage!

segunda-feira, dezembro 21, 2009

Silêncio

Dói tanto que tira o ar, tira a vontade de respirar, tira a vontade de ficar em casa e não sair para encarar logo o mundo, as estradas do mundo. Por mais que se tente, é impossível não sentir ou disfarçar, está estampado nos olhos, no jeito de andar, no jeito de falar da vida e no jeito de conversar sobre o tempo, os dias, os próximos anos. Não se sente fome – e nem é possível saber quando é que se vai voltar a comer – e dá para ouvir bem nos ouvidos umas vinte e uma vozes tentando achar um motivo, um sentido, uma razão. Ao menos uma explicação para tanto silêncio.

Bernardo Biagioni
Slightly Stoopid - Open Road

sábado, dezembro 19, 2009

Aubes II

A verdade é que não se escreve aquilo tudo que estamos vivendo aqui, todas as noites aqui, por mais que pareça mesmo cenas e palavras de outros velhos romances que ando lendo e arriscando dia após dia. Nem coragem eu tenho – confesso – porque depois que escrevo percebo que meus textos talvez ainda não tenham consigo ser sinceros o bastante para descrever nem, sei lá, dois ou três segundos do que acontece quando a gente simplesmente se encosta pele com pele e beijo com beijo. Seu sorriso, nosso sorriso, nossos dedos se procurando lá em baixo e dois corações batendo aceleradamente juntos, bem juntos. Dá para sentir no peito que a cidade inteira já está dormindo - e que a gente está finalmente se reencontrando.


Bernardo Biagioni

domingo, dezembro 13, 2009

Verão

Fez de mim silêncio. Um desassossego inquieto no peito que sorri tanto quanto chora, vem tanto quanto vai, e pelas noites e madrugadas aparece e reaparece, sempre implorando por tudo e um pouco mais. Misturou meus versos com palavras desencontradas, assim como a chuva faz com as lágrimas, o oceano com os mares e as ondas com as águas que correm sem caminho. Virei refém de mim mesmo, da minha imagem preocupada refletida no espelho, um redemoinho de vontade sobre os desencontros esquecidos no passado e encontros perdidos no futuro. Chegou e trouxe consigo a vida que não se lê nos livros, o amor que ainda não foi escrito, e a promessa silenciosa de acabar com todas as lágrimas que o mundo ainda tem para chorar. Veio antes da hora - eu sei - Mas chegou para ficar.

Bernardo Biagioni

terça-feira, dezembro 01, 2009

Carta II

Quero te levar comigo, mesmo que isso não faça assim tanto sentido para quem acabou de se conhecer, de se esbarrar por aí, de se encontrar no mundo. Quero você comigo quando estiver deitado na praia esperando a chuva passar e, mais tarde, ficar em casa lembrando das ondas revoltas no mar quebrando nas pedras e explodindo no meio dos pássaros que voavam sozinhos para casa. Quero você por perto quando acordar e me encarar no espelho, sentir minhas palavras conversando com as suas, e escutar uma parte do seu corpo me implorando para ficar. Eu quero ir e não quero precisar te deixar.

Bernardo Biagioni
Dubbly - God President

Carta

Pouco importa a esquina, a música, qual rua, em qual lua e se a primeira palavra vai ser sua. Não importa o tempo, quanto tempo, os sacolejos do vento, as desventuras do que existe só e apenas dentro de você. Não importa para onde vamos mais tarde, ou se de fato vamos, mas que ao menos continuemos devidamente enlaçados pelos percalços de um doce esperado destino. E pouco importa o que vai existir depois de tudo isso. Desde que sejamos para sempre desatinos - sim, desatinos - e por ora enlouquecidos com o maior amor do mundo. O amor entre nós dois.

Bernardo Biagioni
Bonjah - Somewhere Anywhere

sábado, novembro 21, 2009

música um

Escute antes de recusar porque você precisa ouvir com cuidado cada uma das palavras dos versos, do começo ao meio e do meio ao final. Apague a luz, feche a porta e se precisar até dependure um aviso na maçaneta dizendo que você está mesmo ocupada, muito ocupada, e que não quer ser incomodada pelos próximos três minutos e quarenta e cinco segundos – ou talvez um pouco mais. Respire o silêncio com calma e deixe - ao menos por agora - que nada mais exista além do vento que existe lá fora, da noite que existe lá fora, onde tudo está cuidadosamente brilhando, cintilando e fervilhando. E não é para sofrer ou para se apaixonar. Escute apenas para poder ouvir o que eu ainda não sei cantar.

Bernardo Biagioni
all at oce.

quinta-feira, novembro 19, 2009

Verde

Posso sentir na sua boca a vontade que nega ter, em cada um dos seus silêncios há uma tentativa de disfarçar o amor que sente entre o lado esquerdo e direito do seu corpo. Nunca se entregou por inteiro – nem para mim, nem para ninguém – sobretudo porque tem medo de acabar se perdendo de si e de tudo que aprendeu com o mundo. Então inventa horários, insiste em despedidas e vai embora tão rápido como quando chega. E não sabe, mas eu tenho certeza: fugindo de mim, inevitávelmente também foge de si mesma.

Bernardo Biagioni
CCR - Green River

terça-feira, novembro 17, 2009

Amanhã

Ainda vai me agradecer por tudo que andei escrevendo, pelos convites que estive arriscando, por todos os encontros que desperdiçamos e por todos os caminhos que cruzamos em cada uma das noites quentes e frias das últimas duas estações do ano. Vai me agradecer quando colocar a cabeça para fora enquanto estiver dirigindo e sentir o vento atrapalhar os seus cabelos, e vai lembrar de nós dois quando ver pelo retrovisor o sol se pondo enquanto a cidade mergulha bem lá no fundo, calmamente. Será agora, amanhã e para sempre, refém das nossas lembranças. E por mais que negue, não se entregue e se esconda, enquanto houver vida, existirá saudade.

Bernardo Biagioni

segunda-feira, novembro 16, 2009

Partidas VI

Depois do primeiro ou segundo beijo, ela pediu para parar. Mergulhou os olhos no chão com tristeza, passou a mão esquerda por cima da orelha para arrastar o cabelo e ficou brincando com pés embaixo da mesa, indo e voltando. Lembrou uma música – a nossa música – e cantou baixinho, bem baixinho, exatamente como tinha cantado pela primeira vez quando ainda estava na quarta ou quinta garrafa de cerveja de uma outra sexta-feira. Esperou em silêncio por três ou cinco minutos - respirando e disfarçando - para enfim ter coragem de perguntar: “Quando você vai?”

Bernardo Biagioni

quarta-feira, novembro 11, 2009

17

Perto de meia-noite e ela continua deitada com as mãos apertando os lençóis, sente frio, sente calor, sente o vento que conseguiu entrar pela porta, pelas frestas da porta, e sorri uma, duas, quatro vezes. Atravessa os dedos pelos cabelos com calma, desliza a palma dos dedos pelo pescoço tentando sentir que está mesmo sentindo tudo e apenas deixa que as pernas possam mesmo tremer, assim como treme o mundo. Esses são os dezessete melhores segundos de sua vida e ela sabe bem que pode demorar a se repetir. Sobretudo enquanto estiver sozinha.

Bernardo Biagioni

Viajante solitário

Pegou o que tinha na gaveta, o que tinha para vender - pegou até o colchão – e colocou tudo na varanda esperando alguém aparecer para comprar. Tinha decidido, há vinte e cinco minutos, que iria sair fora a qualquer custo e que se não fosse agora nunca mais seria capaz de ir embora. Deu um beijo no pai, dois na mãe, escreveu três ou quatro cartas e saiu pela porta arrastando a mala no chão, ansiosamente preparado para ver para ver tudo, para ver o mundo, e se sentir em casa.

Bernardo Biagioni

segunda-feira, novembro 09, 2009

Casebre

Fica difícil de imaginar o que ela viveu nos dias em que esteve se escondendo no meio do mato, perdida em um casebre de madeira, escutando pelas frestas das paredes o barulho da cachoeira, o barulho da noite, o grunhido dos morcegos. Sem ter vontade de dormir, sem ter hora para acordar, colocando para dentro doses incontáveis de álcool, tragos ininterruptos de cigarro e respirando poesia, respirando vida. Cambaleante, mas nunca bêbada o bastante a ponto de não saber dançar, de não saber valsar com as tristezas contidas que tinha deixado para trás na cidade. Puramente feliz - e verdadeiramente feliz – e por isso cantava e proclamava os traços e compassos do tempo, do vento, e do calor imensamente quente que invadia a madrugada sem calma, sem cautela. Nunca sozinha, mas eternamente solitária, de dentro do casebre ela esperava o dia amanhecer para que nunca mais precisasse dormir. Foram dias de despedidas, de fugas e de pouca saudade. Voltou ontem ou anteontem. E nunca mais vai ser a mesma.

Bernardo Biagioni

para nós

Saímos às sete da tarde, quando o sol não estava mais lá no alto, paramos no começo da estrada para encher os tanques e abastecemos tudo – sobretudo nós mesmos – e nos despedimos de tudo que podíamos deixar longe por quantos dias fossem necessários. Escolhemos o destino no caminho, marcamos com um xis no mapa, e prometemos que não conversaríamos nada que não fosse só com os olhos enquanto estivéssemos juntos, e apaixonadamente juntos. Tínhamos, eu sei, o menor tempo do mundo. Tínhamos apenas todo o tempo do mundo.

Bernardo Biagioni
Rogerthat - Use Your Heart

quarta-feira, outubro 28, 2009

para você

Tudo bem que eu não estou aqui muito bem - se é que você me entende - mas em todo caso, essa música me fez ver você, me fez lembrar de você, lembrar de nós dois enquanto éramos apenas nós dois. Lembrei daquela noite que viramos juntos sentados no carro conversando, você me evitando sorrindo e tudo, tudo perfeitamente no lugar. Lembrei também do dia seguinte, da tarde seguinte, das nossas noites vazias e das conversas que nunca conversamos, sempre evitando falar de futuro. Lembrei do vento no seu cabelo no dia em que nos conhecemos, as primeiras palavras, os primeiros silêncios e os quatro ou cinco encontros que desperdiçamos só naquela semana. Enfim. A música é para você, um presente meu para você, e se gostar guarde para depois. Guarde para quando voltarmos a ser nós dois.

Bernardo Biagioni
Dispatch - Hey Hey

quarta-feira, outubro 21, 2009

21

Não sei mais como me segurar e não te ligar para dizer tudo que estive pensando nestas últimas cinco ou seis madrugadas vazias que passei na rua, nas ruas, trocando sempre de esquinas, de músicas, de súplicas. Cantando e errando, subindo e descendo, pedindo sozinho e em silêncio para que não chova, para que eu não tenha que ir embora tão cedo enquanto há tanto para ver, tanto para viver. Estou me enganando e enganando o nosso tempo, o que vamos ser e o que fomos nas madrugadas que dividimos, nos beijos que nos permitimos e nas conversas que desconversamos. Foi - e continua sendo - amor em silêncio, medo e desejo, e vinte e tantos desencontros. Vontade e vontade.

Bernardo Biagioni

sábado, outubro 17, 2009

Liberdade

Me ligou para contar que agora está se sentindo finalmente livre, e realmente livre, e que estava com as malas jogadas no banco de trás do carro, os vidros todos abaixados e acelerando sem ter onde chegar. Disse que tinha aprendido, que tinha entendido o segredo, e que estava suficientemente preparada para colocar tudo em prática, tudo na estrada, e assim poder fugir de si mesma. Senti daqui que ela estava sorrindo de lá e senti que era verdade, que estava acontecendo de verdade, e que ela estava mesmo indo – finalmente indo – indo atrás de sua inconsolada liberdade.

Bernardo Biagioni

quinta-feira, outubro 15, 2009

Hoje

Ameaçou que ia chover e não choveu e daqui de cima da varanda eu vi um casal colocando as malas de volta no carro, os sorrisos de volta nos rostos e a tristeza toda ficando para trás, ficando no passeio, aonde só tinham caído três ou quatro gotas de chuva. Ele estendeu o braço direito, fechou o porta-malas com calma e voltou o rosto para trás, depois o corpo inteiro para trás, e ficou olhando até o ponto onde a sua rua desaparecia no horizonte. Talvez fosse a última vez que veria aquela rua. Ou talvez tenha sido a primeira. E então apertou os dedos na palma da mão, colocou a perna direita em movimento e abriu a porta do carro sorrindo até não poder mais. Estavam partindo na primavera, juntos, exatamente como haviam combinado no dia em que se conheceram. Hoje.


Bernardo Biagioni

quinta-feira, outubro 08, 2009

Sexo

Ela tinha mesmo era medo do silêncio. E também por isso cantarolava sozinha no escuro todas as noites quando já estava deitada na cama, ficava desenhando com os dedos no teto as letras do seu nome, rememorava as últimas quatro ou sete desventuras que tinha escrito, e seguia sorrindo largamente tropeçando nas músicas que arrastava não por simples necessidade. Puxava o rádio desligado para perto da cama e apertava os botões com calma, já tinha decorado que o segundo da esquerda para a direita colocava a música para desligar em vinte e cinco minutos. Então agradecia – mas não a alguem ou a alguma força mágica superior – e virava de lado, bem de lado, que era para poder dormir ouvindo o barulho que vinha dos vizinhos de baixo, que estavam sempre acordados.

Bernardo Biagioni

quarta-feira, outubro 07, 2009

Por fim

Já não espero mais nada de você e isso é tudo que sei sobre nós dois agora que já fazem dois ou três meses depois de termos dividido algumas palavras juntos, sorrindo um para o outro e para os caminhos perdidos do mundo. Agora sei que você nunca vai fugir, que não vai deixar de mentir e que vai seguir para sempre me evitando e se evitando, nunca se olhando no espelho, e nunca encarando de frente todos esses seus intermináveis desejos que ficam indo e voltando por cada canto do seu corpo. E também sei que não vai aceitar minhas viagens, essas minhas vontades repentinas, minhas investidas vespertinas e os textos que escrevo cheio de saudade, cheio de liberdade e transbordando de todas as verdades mais sinceras que já tive coragem de confessar. Pode ser tarde, mas agora eu entendi. Agora sei que você prefere ficar assim, perdida, enganosamente feliz e longe, muito longe de mim.

Bernardo Biagioni

terça-feira, outubro 06, 2009

danse

Veja bem que agora sim está tudo bem, meu amor, meus verbos em versos, minhas conversas desconversadas em prosa e minha cabeça acertada com as solicitudes da alma, essa louca e desgraçada que não me deixou dormir nos últimos, sei lá, cinco ou seis meses. Estou escrevendo ininterruptamente, desenhando, imaginando e sonhando com tudo que ainda poderemos viver aqui dentro do meu quarto, do seu carro, daquelas noites e destas noites tão quentes que ficam insistindo em atravessar a primavera para regar as flores, as cores e todos os amores que se amam nas ruas escuras. Estou te amando em silêncio – gritando para mim mesmo – e cantando, chamando e proclamando o futuro que está no futuro nos esperando. Assim ó, dançando.

Bernardo Biagioni

terça-feira, setembro 29, 2009

Despedidas

Meu amor, estou indo. Deixo aqui minhas últimas palavras presas perto da maçaneta da porta, minhas chaves ficam no parapeito da janela – como a gente combinava – e está tudo exatamente como você gosta, duas caixas de som ligadas, as luzes apagadas e as portas cuidadosamente destrancadas nas duas trancas prateadas. Trouxe comigo aquela nossa foto de braços abertos na estrada, os nossos dois últimos bilhetes de viagem – você sabe que eu gosto de colecionar – e a mochila grande, a maior delas. Ainda não sei o que vou fazer, mas andei pensando e talvez o melhor mesmo seja deixar essa cidade, essas minhas bobagens, e ir por aí sem medo. Preciso respirar, me libertar de verdade e sentir falta de você. Eu preciso sentir a falta de você.

Bernardo Biagioni

sexta-feira, setembro 25, 2009

Verdades

Agora, por favor, peço que experimente escrever para perceber como agora pode escrever maravilhosamente bem, tudo apaixonado, tudo com raiva, com medo e com muita e muita verdade. Experimente me destratar, destratar os tratos que andei assinando com os olhos fechados enquanto você mal me olhava de fato, você por todo esse tempo esteve apenas se tratando no espelho, descuidando dos seus desejos mais decentes e sinceros e recusando tudo, recusando a vida, os vizinhos, suas súplicas mais mesquinhas. Vamos, vamos, agora tudo que quero é querer ver você gritar, rastejar, pegar o telefone e ligar pedindo, solicitando e quase explodindo de saudade. Eu quero ver você confessar que está desistindo e que está, calorosamente, morrendo de saudade.

Bernardo Biagioni
Ouvindo: the beautiful girls - shot down

Roam

Mas ainda não encontrei ninguém. Nem nos bares, nas cervejas, nos cigarros que troquei, nos lábios e lábios que beijei e nas viagens pelo mundo, pelos becos do mundo, e por cada curva desta cidade e de todas as outras cidades que estive desbravando, escrevendo e mandando cartas atrás de cartas. Tive lá os meus encontros, os meus desencantados encantos, espantos momentâneos e suspiros roucos, gritos loucos, sentimentos trôpegos e incertezas incompletas. Sempre procurando, pincelando em papéis avulsos as desventuras que andei tropeçando, insistindo e implorando. Mas nada, nada e nada. Mesmo quando tive tudo e quando achei que finalmente iria adormecer seguro, descobri no sol que minhas manhãs continuariam escuras, que minhas palavras não seriam mais tão "suas" e que minha procura continuaria em frente indolente e ininterrupta. E hoje, errante, desenho páginas e páginas de planos, folheio meus sonhos enquanto me engano e sigo no tempo errando, arriscando e acelerando. Apenas esperando que a vida venha me encontrar.

Bernardo Biagioni

quarta-feira, setembro 23, 2009

Partidas V

Arrumamos juntos as malas no último domingo de fevereiro. Lembro claramente de tudo espalhado no quarto, o cheiro de viagem, o mistério, a minha incansável ansiedade e a velha vontade de cair fora indo e voltando no meio de nossas pequenas conversas. Estava tudo cheio de fumaça e seu cigarro estava novamente aceso, passando de uma mão para outra, da mão esquerda para a boca, e da boca para o cinzeiro de vidro jogado sobre a mesa. “O que você sente?”, me perguntou enquanto arrastava a bagagem para perto da porta com facilidade e sorria mostrando que o serviço estava feito. Pedi um trago do cigarro, puxei o cinzeiro para perto e olhei para baixo, para as malas e para os seus pés firmes e livres erguidos sobre o assoalho. “Medo”, respondi, mas sorrindo, sorrindo largamente e desafiando o mundo, os inseguros e as dúvidas pequenas que brincavam comigo. Era, e é, apenas medo de ir e não voltar nunca mais. E nada mais.

Bernardo Biagioni

segunda-feira, setembro 21, 2009

Tudo

Sempre as mesmas músicas, as mesmas noites, os mesmos versos e mais uma vez caminhando incerto pelos pensamentos perdidos, os resquícios dos beijos, as marcas que ficaram. Seu perfume envolto no meu cheiro, seus lábios tatuados nos meus dedos e cada uma de todas as nossas palavras entregues ao som da chuva fria que escorre pela janela cuidadosamente entreaberta para espantar a saudade que existe aqui dentro. Passam os minutos, os dias e as horas e eu sigo martelando inconformado os nossos desatinos, os destinos que desistimos e as outras tantas manhãs de sol que poderíamos ter dividido se tivéssemos desafiado as nuvens escuras que espantaram nossas sinceras vontades. Encaro meu rosto no espelho e não há sorrisos, motivos ou sentidos. Restou apenas silêncio, textos de como poderia ter sido e uma espera incessante de você aparecer por aqui para que possamos simplesmente sair por aí e voltarmos a ser tudo aquilo que tínhamos construído: nada.

Bernardo Biagioni

terça-feira, setembro 15, 2009

La mar

Naquela tarde eu descobri a minha saudade de você. Os pés mergulhados na areia, sentado na cadeira de plástico roubada do quiosque que já estava fechado e olhando as ondas vindo e voltando até onde tudo desaparecia no oceano. Sozinho, mas mais uma vez conversando com todos os meus versos mais apaixonados, minhas músicas que não foram escritas e com as nossas conversas incompletas, todas elas. Todo mundo passava me olhando, um misto de estranheza e complacência, não era nada difícil de convencer o universo de que eu precisava de cada segundo daqueles raros minutos de felicidade instantânea. E em cada rosto, você. Em cada rosto você rindo, sorrindo e gargalhando contra todas as infelicidades da Vida, das cartas que te mandei assinadas e das minhas verdades mais sinceras. Inacreditavelmente linda - Como eu nunca vi mais.

segunda-feira, setembro 14, 2009

Ser

Enfim é domingo. Só me restou agora todo esse suspiro correndo perdido, as marcas dos cigarros nas roupas e as roupas sujas, amassadas, rasgadas por seus dedos trôpegos e certeiros. Um silêncio inquieto embotado no peito, minha vida inteira sem jeito de se acertar nos trilhos dos dias que viram noite e de todas essas nossas noites que viraram dia. Penso tanto em nós dois, no que fomos, no que nunca poderemos ser e, mais do que nunca, no que poderíamos ter sido se você tivesse aceitado tudo, sorrido de tudo e não desconfiasse de nada daquilo que eu escrevia inconsoladamente apaixonado. Agora é tarde, muito tarde. Eu já vi que não é sua culpa, mas você não é mesmo livre como eu ficava imaginando que era em todos aqueles olhares que trocamos por aí e por lá. Escrevo para agradecer, para falar que estou indo, e que agora eu vou seguir por essa vida errando, como é certo do meu jeito irreparável de ser. Ser livre.

Bernardo Biagioni

quarta-feira, setembro 09, 2009

Fugas

Por que pensar tanto se pensando assim você não vai, não vem, nada tem e tudo é sem vontade, maldade e verdade? E por que não confessa que me ama, que é louca para eu te chamar de "minha" na cama, nos lençois, nos versos e provérbios que muito dificilmente eu sei escolher? Vamos, liberte-se, livre-se de tanto espanto, pranto e incontáveis acalantos, já estou farto de seus rodeios mesquinhos, suas recusas irreparáveis e seus lamentos momentâneos. Estúpida você, não vê? Trate logo de se encarar no espelho, acertar as contas com os nossos desassosegos para que então possamos apenas ir e fugir de tudo, de todos, do mundo e, sobretudo, de nós mesmos.

Bernardo Biagioni

Aubes

Recusou todas as minhas chantagens, meus bilhetes de viagem e todos os versos mais sinceros do mundo que, por uma noite e apenas uma noite, eu quis escrever e desenhar por todo o seu corpo. Me deixou perdido na rua como um louco, dirigindo por cada distrito, cada cidadela, bebendo sozinho, contando histórias vencidas e tragando dois, quatro e cinco maços de cigarro por dia, bêbado, sempre bêbado. E eu continuava insistindo, pedindo e implorando, mostrando nos mapas os caminhos da vida, brincando com a fumaça embriagada e trocando de sorrisos enquanto o vento se ocupava de correr com força contra seu redemoinho de cabelos. Então parti sozinho, mais uma vez sozinho, e pelo retrovisor eu fui vendo a lua, as estrelas e as luzes da cidade dançando, ondulando e mergulhando devagarzinho pela linha invisível do horizonte. E você lá ficando, o mundo inteiro ficando, tudo sumindo, chorando e o nosso destino se despedaçando pelas rachaduras tímidas de cada uma das estradas. Exatamente como todas estas últimas trinta e tantas madrugadas.

Bernardo Biagioni

quinta-feira, setembro 03, 2009

Piaf

Sobrou agora apenas o cheiro desesperado do seu perfume, que por mais que se lave e se esfregue continua impregnado no corpo, nas mangas, nas roupas. E junto dele o nosso beijo, o nosso único beijo, tão sem rodeios e preceitos, mas sinceramente necessário. Sobrou essa distância, essa saudade e essa vontade tão perversa de te ver, é ela que me pega de versos e versos pelas noites frias deste inverno indolente. Hoje eu te quero tanto, tanto, tanto... Passo o dia inteiro planejando esperançosas viagens, assinando cartas em assinaturas forçadas e contando nos dedos os dias que faltam para o nosso desencontro se encontrar. Em uma esquina qualquer de outra madrugada qualquer, Estarei por lá esperando. Para sempre te esperando.

Bernardo Biagioni

quarta-feira, setembro 02, 2009

Fargo

Preciso dizer que te quero. Não por conta dos meus pensamentos errantes, minhas cartas sem coragem, ou por culpa das malas que arrumo pensando que qualquer dia desses a gente pode simplesmente cair fora e sair por aí. Cada suspiro que a vida dá, eu penso em você, exatamente como estava em alguma madrugada dessas de alguns dias atrás, linda, os sorrisos abertos e todos os mistérios do mundo dançando consigo. Beijo escondido o retrato que não tiramos, digito o numero do seu telefone que não anotei e fico rodando pelas ruas da cidade acelerando devagar e olhando cada boteco, cada mesinha, cada conversa. E acho você em todas elas, em cada uma delas, olhando cuidadosamente para dentro dos meus olhos e dizendo aquilo tudo que ainda não consegui entender. Hoje, dois ou cinco dias depois, escrevo a décima ou a vigésima página para você. E mais do que sempre, agora quero te ver, abraçar mais uma vez cada um dos seus abraços e recitar, no seus ouvidos, o tanto que aqueles nossos minutos tem me feito sofrer. Sofrer de felicidade.

Bernardo Biagioni

terça-feira, agosto 25, 2009

Inverno II

Desde então eu só tenho encontrado chuva. Parece que todo o tempo resolveu lastimar o nosso passado, repartir a nossa distância, os nossos pecados contidos e as nossas incompletas vontades. Me falta faz você naquela rua, naquela música e naquele frio tão forçado para um começo de inverno. Nossos dedos dados, os beijos apaixonados e os sorrisos de quem passava andando, qualquer um poderia notar o que estava acontecendo dentro das nossas cabeças cuidadosamente silenciosas. Era apenas o som das folhas batendo contra as outras folhas, as árvores dançando no escuro e a vida ali voando, voando, voando... Tanto para dizer e tanto silêncio - Como é que isso podia fazer tanto sentido? - Hoje isso é tudo que ainda me pergunto. Folheando os retratos que não tiramos e as madrugadas que não dividimos, agora vejo a chuva brincando no vidro e o reflexo de nós dois indo embora. Partimos em passos certos para os caminhos contrários. Errantes, logo no inverno.

Bernardo Biagioni

segunda-feira, agosto 24, 2009

Sourde

Sempre disse não antes mesmo de pensar que poderia dizer sim. Não escutava as investidas maliciosas do orvalho matinal que se ajeitava nos vidros dos carros estacionados na rua e pensava - apenas pensava - que toda aquela música que tocava na madrugada era sua. Rá, como eu ria disso tudo, andando de um lado para o outro, correndo os dedos pelos ponteiros despontuados do relógio da parede e vendo a noite ser dia, a chuva secando e as nuvens se abrindo. Vivia pela metade - e ainda vive, claro - e hoje eu consigo ver isso nitidamente. Suas vontades eram dormentes, suas súplicas tristes e seus desejos eram tão e tão pequenos quanto a felicidade que parecia ter. Pensava lá na frente, no depois do depois, na curva dos meses, nos encontros arrependidos e nos lábios que se perdiam pelos deslaços do tempo. Não soube viver o presente e acabou se perdendo do nosso futuro. E hoje não escreve mais, não sorri tanto e todos seus incontáveis sonhos estão mais uma vez conversando com seus pensamentos surdos. Completamente surdos.

Bernardo Biagioni

domingo, agosto 23, 2009

Iluminados

E agora eles estão se desafiando, dividindo os mesmos cigarros, as mesmas garfadas, as mesmas coxas sujas e até os versos duvidosos da lastimável profusão sonora que se infiltra pelos poros do carro. Acelerando e freiando, indo e voltando e sempre estancados nos próprios passos incertos e por certo desacomodados. Em silêncio e em poucos sorrisos, se arrastando pelos becos escuros, as matas fechadas, as estradas bloqueadas e pelo céu cautelosamente estrelado. Bêbados de paixão pelos perfumes soturnos da noite, os cabelos que voam, os uivos que não dormem e pelas mentes que nunca bocejam. Vivem agora e nunca o depois, são levianamente loucos pelos barulhos e pelas entranhas da madrugada fria que existe na esquina iluminada. E bebem a solidão, a descrença, a fumaça branca e as lágrimas do vento, sempre envoltos no vento, suspeitos, estáticos e inacreditávelmente Vivos. E é isso, exatamente isso: Eles estão inacreditávelmente e encantadoramente Vivos.

Bernardo Biagioni

Inverno

Mas o que dizer deste silêncio, das lágrimas embotadas no peito e dos sacolejos insensatos da infelicidade desarrumada que vem e vai pelos caminhos da noite? Que solidão estúpida esta de não conseguir me ater, atracar os laços do destino, meus desatinos e tantos e tantos incontáveis empecilhos. Por que não consigo andar de braços dados, dormir com os pensamentos encontrados e você abraçada no melhor dos meus abraços, desafiando e impedindo o frio que existe lá fora? Estou perdido, mais uma vez - e sozinho, até o amanhecer - escrevendo, pontuando, soluçando e indagando para a vida tudo que me desafortuna, enaltece e incomoda: Por que, me diga, não estamos juntos - e eternamente juntos - agora que até o Tempo reconhece ser a Nossa hora?

Bernardo Biagioni

quinta-feira, agosto 13, 2009

Partidas IV

Incondicionalmente prontos. Malas armadas, cartas assinadas e o que tem que ficar ficando, queimando e sumindo no véu de poeira negra que os pneus lançam para trás. Enfim tudo para trás, dançando e ondulando pelos retrovisores e descendo pelo horizonte azul. No carro apenas os amores perdoados, as lembranças do nosso primeiro beijo e todas as nossas futuras músicas, súplicas e inspirações. E mais uma vez pisando fundo, as duas e eternas faixas pela frente e o asfalto sendo engolido pelos tropeços do nosso passado. Apenas juntos, juntos e juntos. Sem destino e sem caminho, acelerando em direção à vida e sem medo de chegar.

terça-feira, agosto 11, 2009

Partidas III

Na terceira cerveja já me olhava diferente, isso posso garantir. Tinha pouco medo, muita vontade e um tanto desconsiderável de insegurança, toda sua velha e pobre cobrança estava começando a se esfarelar em perguntas pouco profundas. "O que você espera?", arriscou, seguindo em um largo gole na quarta ou quinta garrafa da noite. Tirei um cigarro calmamente do bolso, pedi o isqueiro sem olhar em seus olhos e dei um longo trago como se fosse o último trago da minha vida. "Quero ir", respondi, olhando para os meus pés e tragando pausadamente todas as lágrimas do mundo. Eu quero ir para o mundo.

Partidas II

Não é que agora eu tenha me cansado da cidade, dos carros, das luzes ou das praças. Mas é que, de alguma forma, parece que agora eu já conheço o barulho de tudo, sabe? Das manhãs de domingo, dos passos do vizinho quando a novela termina e das portas rangendo por culpa dos ventos fortes que aparecem pela noite. Tudo é tão previsível, triste e opaco. Sinto que preciso mudar, ver novas conversas e escrever cartas de saudade. Preciso colocar o meu carro de volta na estrada e ouvir o doce e insuperável barulho do silêncio.

Partidas I

Encontraram-se por acaso quando ele estava saindo do trabalho na segunda terça-feira de um falso fevereiro. Ele passava pela porta daquela requisitada padaria do bairro e acabou vendo seu carro estacionado colado na esquina. Pegou o retorno na primeira chance, voltou no começo a música que tanto ouvia e parou o carro por perto. Entrou, ela estava saindo, olhou-a nos olhos e sentiu todo seu corpo corando, estremecendo e fibrilando. Ela hesitou, correu os dedos pelos cabelos negros e passeou nos próprios passos esperando que ele finalmente tivesse coragem de dizer tudo que deveria ser dito ali e por hora: "Vamos comigo embora?"

segunda-feira, agosto 10, 2009

Noir

E também sei que jamais esquecerei daquelas noites nem tão frias de um inverno distante, quando tudo que fazíamos era sentar no carro e ficar trocando lembranças com pensamentos enganosamente preocupados. Nossos dedos, beijos e lampejos rodopiando pela fumaça do seu cigarro e todo aquele cheiro afável da liberdade dançando bem na nossa frente. Livres, livres e livres. Era só e disso que sabíamos e sentíamos junto das suas unhas, nossos abraços e do espaço vazio que nos separava. Duas músicas, oito, doze, o tempo parecia finalmente perdido do próprio tempo e seguia tropeçando, acelerando e engasgando por cada uma de suas paradas. Olhos por olhos, lábios nos lábios e uma vontade inflamável de gritar para o mundo aquilo tudo que eu mal seria capaz de sussurrar: sê minha e agora.

Bernardo Biagioni

sexta-feira, agosto 07, 2009

Tragédia

Acorda às seis, sai às sete e chega às oito da noite em casa. Pontualmente. Não falta com a novela, com os novelos, com a comida para os passarinhos da vizinha e com as duas xícaras de água com que alimenta suas plantas - Tem duas orquídeas e uma samambaia robusta e longa. Tão longa que chega até o andar de baixo.

Seu último sorriso foi no almoço de ontem, quando sentiu o rosto se corando por culpa das investidas tímidas e suspeitas de um alguém qualquer. Não sente uma mão deslizando por suas costas desde a última primavera. Sente saudades - embora não confesse - mas a vida parece mais segura agora que controla suas rédeas.

Não é feliz e sabe. Sabe bem que não é feliz. Tem compromissos, horários marcados e até planos para o futuro, mas são todos tão interessantes quanto o rosto que enxerga nos espelhos da vida. Parece mentira, mas tem vinte anos e pouquinho e já parece estar cavando o próprio túmulo. Bebe pouco, come muito e só fode consigo mesma.

Maria, chama. Mas ganha outros nomes pelos caminhos por onde se bandeia. Porém, de norte a sul, de sul a oeste, recebe só e apenas o apelido de Tragédia, assim curto e assim simples. Sente-se sozinha no escuro, mas não se preocupa e não liga. No fundo ela bem sabe que o mundo está cheio de Marias.

Bernardo Biagioni

domingo, agosto 02, 2009

Castaneda

Veja, homem. Seus panos estão se arrastando pelo chão sujo, que tamanha estupidez deixar que seus panos se arrastem pelo chão sujo. Venha, venha, quero te mostrar o Lago que existe atrás da casa, é grande e largo, cabem muitas pessoas como Vocês andaram me pedindo. Aceita algo para beber? Tenho aqui uns whiskys, conhaques e outros tantos potenciais deturpadores mentais que podem ajudar nesse seu processo de expaaandir Tudo. Você expandiu tudo, Carlos? Expandiu tudo? Chegou até o nobre tormento atento do tempo que fere os descompassos do vento e faz você escrever assim, como um novo lunático dos versos seguidamente repetitivos por culpa do Ócio dos dias? Uau! ::::::: diria o Tom Wolfe que esteve serpenteando uma caminhoete pra cima e pra baixo daquelas ladeiras infinitas de La Honda. Mas agora acabou. (As letras agora ficam menores e a música muda). Acabou e aqui estamos, frente a frente, versos com versos e prontos para uma boa conversa. Podemos ir?

Bernardo Biagioni

quinta-feira, julho 30, 2009

Samba

É porque você não sabe o que vai acontecer com você quando nosso instante chegar. Nada que você possa ter lido, assistido ou ouvido chegará perto de tudo que tenho para te mostrar, as cartas que te escrevi, os lugares que visitei e tudo que me disseram sobre o mundo. Serei então completamente, exclusivamente e por alguns meses até "eternamente" seu e apenas seu. Portanto atenda, atenda a todos estes meus tantos pedidos desconcertados que vez ou outra chegam até você e não impeça o descompasso deste samba. Aceite pois o meu teatro, minha nada poesia e tudo que estive rabiscando enquanto você assustadoramente Dormia deixando a vida passar. Seus dias estão mudando, meu bem. Mude você também.

Bernardo Biagioni

quarta-feira, julho 29, 2009

Costa

Parecia um desses personagens enigmáticos treinados por Wim Wenders, bastava olhar para seu rosto para sentir uma inquietude distante e ansiosa. Mesmo seu semblante sobrou esfalecido pelos dias em que esteve viajando para dentro da própria cabeça. Gesticulava mais porque já não dizia tanto quando antes, seus verbetes bem-selecionados por ora passeavam pelas canetas que costumava carregar nos bolsos por onde se aventurava. Silencioso, muito silencioso. Tive com ele um dia desses em algum espelho de bar engordurado e trincado da cidade e nos olhamos nos olhos até que todos os nossos olhos pudessem lacrimejar. Pela primeira vez pude ver as suas rugas, seu relógio em pleno funcionamento e até os cabelos se esbranquiçando. Sibilava sussurros incompreensíveis e sorria um sentimento descomunal. Não parecia estar voltando de uma viagem ou se preparando para outra, como muito gostava de fazer nas tardes de inverno. Apenas parecia satisfeito de estar ali, do outro lado, imitando os meus sorrisos e desconversando as minhas conversas em silêncios repentinos.

Bernardo Biagioni

terça-feira, julho 28, 2009

Terças.

Vê se então me escuta, já que não acredita, entende ou pretende entender tudo que estive rabiscando por estes papéis vencidos nos últimos vinte e tantos dias. Tanta poesia barata, pouco trabalhada e salpicada pelas injúrias do álcool consumido em todos os bares do mundo é a maior sinceridade que venho tentando esboçar. Lembre logo de ontem, ou talvez de anteontem, quando cruzamos a noite e vimos o dia ser dia bem acima dos nossos olhos nunca desapaixonados. Aqueles tantos e tantos abraços apertados, beijos por todos os cantos e cabelos por todos os lados ainda estão envoltos na melhor das minhas memórias. Mais do que nunca ando perdido, olhar distante e sozinho, bêbabo, cambalente e trocando versos vazios com vazios cheios de versos. Apaixonado, por que não? Desconcertado, tropeçado e escrevendo um, dois, três e quantos outros textos forem necessários por noite. Finalmente aqui estou eu: sentado na varanda, luz apagada, respirando minhas intermináveis lembranças e esperando o nosso instante chegar.

Bernardo Biagioni

quinta-feira, julho 23, 2009

Fernando Costa de Faria Biagioni

E ali então vai ele, camisa de malha preta, jeans arrastando pelo chão e o par de tênis que nunca foi lavado, caminhando, brincando com as próprias incertezas e sem nunca olhar para trás. "Seu Antônio" assiste tudo do último andar, sombrancelhas caindo pelos olhos e o rosto todo tenso, preocupado, cheio de velhas morais católicas que ficam remoendo pelo seu estômago junto dos últimos queijos Minas que gostou de provar. A vizinhança sabe que o sujeito está mesmo indo embora, que os passos vão continuar passeando com firmeza pelo labirinto de buracos que é aquela calçada antiga de uma tradicional cidade mineira custe o que custar. Estão todos prostrados de fronte as tendas, quitandas, barzinhos de uma cerveja só e vendinhas de um e noventa e nove, olhando e cochichando sobre o prodígio que debandou do barco, pulou a cerca e agora vai tomar o mundo por entre os dedos como se fosse apenas tomar o mundo por entre os dedos. "Vamos, vamos atrás dele", alguém diz, outro repete, mas um terceiro presente estica o dedo e manda que fiquem exatamente onde eles estão. Este último sabe e nem precisa explicar para ninguem a razão de deixar tudo como está: Este momento é só e apenas de Fernando Costa de Faria Biagioni e ninguém, escutem, ninguém vai impedir que ele fuja para sempre da liberdade contida que tentou viver nos últimos vinte e tantos anos. "Vá, menino!" Vá viver o que a vida quer que você viva.

Cinco minutos

Dançava sozinha no canto escuro de uma velha espelunca do Centro da cidade. Os cabelos envoltos no vento frio que corria pelas janelas entreabertas e um vestido que dançava quase involuntário pelo assoalho sujo do século passado. Não sorria e não parecia triste, apenas existia em algum pedaço do seu tempo, de suas vagas lembranças e suas sofregas cobranças. Clarissa, se chamava, e toda vez que soprava seu nome pelos lábios quase virgens, tinha que sorrir logo em seguida, como um rito bobo mantido com o passar dos anos. E até ali só tinham sido vinte e uma primaveras, trinta e duas viagens de férias e umas tantas dúzias de horas dentro de um Ford Galaxie, de 1970, onde costumava escapar do mundo em finais de semanas curtos e pouco planejados. Lembro que nesta noite em especial, antes de colocar a Sua música para tocar pelos alto-falantes estratégicamente posicionados entre a sinuca e uma geladeira, ela estava no telefone, estatelando as cordas vocais e praguejando contra algum infeliz que atendia do outro lado: "Nunca mais me procure", disse, antes de socar o fone no gancho com uma força que nunca vi igual e cruzar o bar gesticulando alguma coisa que ninguém entendia. Pediu uma cerveja, agradeceu e abriu a garrafa girando com calma os dedos pela tampinha emperrada. Deu um gole, depois dois, e me olhou no fundo dos olhos como se pela primeira vez tivesse visto que não estava ali sozinha. E eu sentado poucas cadeiras depois, poucos metros depois, sob uma luz amarela e fraca, com o jornal do dia anterior aberto sobre a mesa cheio de notícias velhas e desinteressantes. Sorri, ela sorriu, trocamos os dedos por baixo do balcão de madeira e ela me disse as palavras mais incríveis que já escutei nesta vida. Pena que elas jamais conseguiriam sobreviver escritas.

Bernardo Biagioni

domingo, julho 19, 2009

L.

Cento e quarenta e oito quilômetros por hora e acelerando. A música nunca é alta o bastante quando o carro está a cento e quarenta e oito quilômetros por hora e acelerando. Não há mais certezas e incertezas, horários e compromissos - passado e futuro agora se confundem na linha tênue do tempo. E você, apenas você, ondulando pelos horizontes distantes, paisagens virgens e atalhos entrerecortados pelos traços calculados de um mapa largado no banco de trás. "Aumenta", a vida implora. Mas já não há o que aumentar. Eu e você, o que fomos e o que seremos - enfim juntos, na mesma direção, seguindo na direção contrária de todas as últimas mazelas dos nossos insatisfeitos sentimentos. Agora estamos rumo à liberdade. À nossa liberdade.

Bernardo Biagioni

Neruda

Vamos conversar, doutor. "Senta, toma a cadeira. Quer pedir alguma coisa?". Sim, sim. Há dias tenho pensado e planejado esse encontro. "Calma, filho. O que tem aí debaixo do casaco?". Duas latas de cerveja e uma carta que ainda não assinei. "E por que as latas continuam fechadas e a carta não está assinada?" Não sei. "Como assim você não sabe? Como alguém pode escrever uma carta e não deixar o nome?" Tenho medo. "Medo? Medo de dizer tudo que anda pensando? É isso?". É. "Quanta estupidez, menino. Lembra o que te disse sobre os poetas?". Hum? "Os verdadeiros poetas são aqueles que inspiram! Não lembra?" Lembro sim. "Então vê se aprende de uma vez e me passa logo uma latinha!"

sábado, julho 18, 2009

3:40am

- Vamos fazer o seguinte: eu passo aí daqui uns 15 minutos, preparo o meu rum com coca e gelo e a gente pega a estrada até a primeira cidade que aparecer.

- Ótimo. Só não entendi uma coisa!

- O que foi, meu bem?

- Por que você chamou o rum de "meu" rum?

México

Naquela última tarde de julho ela estava finalmente indo embora. Olhar distante, conversas perdidas e cheia de velhas vontades; dizia que aquela era a sua hora e que sairia ainda antes de amanhecer. Me deu adeus com a mochila já nas costas; arrastava as malas pelo chão com leveza, tranquilidade e sorria uma tristeza contida. Brilhava. Por mais que se falasse em saudade, futuras vontades e eternas verdades, todo nosso velho tormento agora se entendia. "México", me disse, quando arrisquei a pergunta tirando as mãos dos bolsos. Beijei-a no pescoço - como gostava nos dias de frio - ajudei a colocar uma das malas para dentro do carro e fechei o porta-malas estendendo o braço direito. Dei dois passos para trás, talvez três, e deixei que ela saisse da garagem com calma. Fiquei então em pé na calçada, olhando nossa vida toda indo embora e sorrindo, esperando que o vento voltasse a soprar mais uma vez. Apenas mais uma vez.

Bernardo Biagioni

terça-feira, julho 14, 2009

Roma

E se eu falar que é amor? Assim sem drama, trama, versos ou capítulos cuidadosamente selecionados pelo requinte do Universo, a Lei dos Versos, versadores e poetas. Tão precoce, eloquente e por ora necessário, todo este sentimento que estupefata o mundo em gargalhadas destemidas é, eu juro, a maior verdade que a minha verdade ousou confessar. Não me lembre os dias, as datas, as provas e os encontros, todos esses apetrechos bobos da razão humana que dita em lista os compassos do Peito. Livre como deve ser, é meu mais novo desacato à sofridão dos Ventos, seus caminhos tortuosos, oblíquos e controversos. Amor como se diz quando se está amando, puro como os oceanos distantes, leve como os voos das manhãs, os rompantes dos pássaros e suas penas flutuantes. Ambíguo e rosa púrpura dissimulada, insatisfeito com a insatisfação da saudade, essa outra mentira forjada dos caminhos desencontrados. Amor como só é o amor. Ríspido, rápido e momentâneo. Corre pelos sulcos da Vida como as águas de uma cachoeira em transe: Inevitável.

Bernardo Biagioni

sábado, julho 11, 2009

C.

Estou sofridamente apaixonado por você. Por tudo que escreve, descreve, ama e desanda enquanto me olha de longe, dobrando as nossas investidas vespertinas, propositalmente sem propósitos. Por culpa dos teus beijos que não beijei, os lábios que não encostei e todos os mistérios, medos, anseios e sei lá quantos mais o quê. Por conta dos teus encantos, meus encantos, nossos "entantos" e tantas outras razões traiçoeiras, rabujentas e desnecessárias, agora estou enfim te amando, desejando e implorando. Tudo que por ora escrevo, descrevo, amo e desando está em compasso com o que você diz, com os encontros que você não quis e horários que não combinamos. Por desculpas óbvias estou aqui clamando, por pouco não te ligando, para que não se abandone, não me abandone, e finalmente se liberte das garras perversas da nossa distância. Vamos, fuja, corra impune pelas ruas e vamos celebrar aquilo tudo que mereçe ser celebrado: nós dois e ponto.

Bernardo Biagioni

Rimbaud

Arrebatador de amores mundanos. Doce leviano tormento da espécie humana, um verdadeiro cachorro, como convém ser nomeado quando se entrevem pelas pernas nuas dessas noites inebriantes. Safado, indolente e nada puro, colarinho deposto, chapéu nas mãos e sua latinidade tão forjada quanto o tipo de penteado que usa. Conquistador barato, pitoresco desaparato das esquinas que cruza, dos beijos que abusa e dos amores que inspira. Dramaturgo e poeta, encena em cenas os sambas que samba em papéis avulsos, exdrúxulos e lamuriados. Amigo, profeta e para sempre galanteador. Galanteia a vida na triste garantia de que será um eterno refém de sua própria poesia. "Coitado" (...).

Bernardo Biagioni

terça-feira, julho 07, 2009

Go!

Estava torto de tão bêbado, lembro de todo aquele cheiro malidiscente do cigarro apagado que trazia entre os lábios. A barba de quarenta e cinco dias, cabelos descuidados, camisa amarrotada e um sapato cheio de lama, grama e remanescencias dos seus meses largados, perdidos e desconcertados. Cheio de histórias, desventuras boêmias pelos caminhos obscuros da cidade iluminada que havia passado em alguma noite despreocupada de Abril. Sorria como se fosse agora livre, simplesmente livre, cantando, dançando e desaforando a vida desafortunada que lhe atormentava por onde se perdia. Duas vezes mais poeta, três vezes mais sofredor e uma dúzia de vezes mais apaixonante, soberbo e vívido, todo seu sorriso sorria pecaminoso e libertino. Tinha enfim se formado em poesia, nobre desarmonia do papel levianamente rabiscado. Estava amando, amando e amando. Amava não a alguém ou a algo especial. Era simplesmente paixão pela vida que estava vivendo, tão pura e sua. Mas acabou partindo, saindo, indo, indo e indo. Me ligou numa noite escura de um velho Outubro e avisou: "Vou rodar o mundo". Daí botou o telefone no gancho, tirou um cigarro do bolso e atrevessou a rua estalando os dedos. O filho da puta continuava dançando.

Bernardo Biagioni

Nota

Estou devendo algumas atualizações ao temposestranhos, mas os dias tem andado um tanto complicados. Estive em Paraty na última semana para cobrir a FLIP e agora estou cheio de trabalho na Ragga, revista em que trabalho de segunda a sexta.

Bom, enquanto não escrevo por aqui, vocês podem me acompanhar pelo twitter (www.twitter.com/b_biagioni). Confesso que achei que nunca fosse aderir a essa "novidade", mas a ferramenta tem sido fundamental para o meu trabalho de jornalista (posso fazer coberturas ao vivo de shows, ler notícias de última hora e escrever sobre livros e filmes que ando lendo e assistindo).

E para quem gosta mesmo deste blog, volto a sugerir a comunidade Tempos Estranhos, no orkut. Gosto muito de saber quem passa por aqui, o que acham dos textos e tudo mais. "Ninguém escreve por muito tempo quando não se escreve para alguém", já dizia algum velho escritor amargurado pela falta de leitores. Portanto, é isso. Vamos juntos nestes tempos estranhos.

Volto assim que minha inspiração mandar.

Bernardo Biagioni, @b_biagioni

sábado, junho 27, 2009

Sonho

Era um banheiro pequeno de azulejos brancos, as paredes mergulhadas logo sobre o tapete. A sensação é que o espaço era ainda menor do que de fato era. Tinha uma banheira comprida, um tanto larga e tava descascada nas laterais. Você estava encostada nela, as pernas estiradas, um sorriso sacana e tinha as unhas vermelhas.

Engraçado é que toda vez que lembro de você, você está com unhas vermelhas. Pode estar sorrindo, triste ou com raiva, como costumava ficar sem grandes razões aparentes. Apesar da face leviana, as bochechas rosadas e aquela aparência tranquila, atrás do seu corpo sempre existiu um universo inteiro. Explosivo, intuitivo e fechado. Muito fechado.

Vinha andando devagarzinho e quando chegava a poucos centimentros de mim, logo armava o dedo indicador. Encostava na minha barriga, enchia a boca de ar esperando um beijo e não dizia nada. Ficava parada do meu lado, brincando nos próprios passos intactos e adormecidos. A gente olhava o tempo passar.

E com o tempo foi indo, indo e indo. Dobrou a esquina na terceira avenida e nem disse adeus. Sei que tomou uma carta minha nos dedos, beijou-a com delicadez e devolveu-a sem pressa na bolsa. Fincou passos determinados no chão, atravessou o quarteirão escuro sem medo e foi embora pra nunca mais voltar..

sexta-feira, junho 26, 2009

Guerra

Doce desencanto. Nobre desaparato do tempo, estático, lúdico, trôpego e viajante. "Quem é você, Bernardo?" Escute o vento, as águas, as máguas e os temporais. Sê a Vida que te vive, afaga e desafa, beijos em silêncio pelos trilhos do tempo. "De onde vens?" De lá e para lá, cabelos correndo horrendos pelo passado chato, opaco e maltratado. Sou Amor, por que não? Mordaz, vívido e temporário. O amor é temporário, como a vida ensina a ser. "Por onde andas?" Perdido, límpido, desencontrado e não sei mais o quê. Andarilho andando pelos traços da estrada, minha pobre e velha namorada, nova, sórdida e interesseira. "O que queres de mim?" Seus braços, o sabor do teu Vinho, tuas coxas, suas costas encostadas nas minhas notas, arrepios. Deixe-me desenhar você. Pintar seus traços, atrapalhar seus embaraços e adestrar teus lábios e lábios. "Me ama?" Hoje sim, amanhã talvez e depois só depois. Hoje só sei de nós dois, um mais um, dois em um. "Como terminas?" Com um ponto, porque não tenho medo. Meus versos adormecem tarde, recomeçam cedo e não se cansam de você. Hoje é hoje e amanhã não vem. Venha agora porque depois eu não sei. "Me espera?" Estou na porta. Venha logo, desça já. Meu coração está em chamas e não há muito mais o que falar. "Acabou?". Sim, acabou. Mas não se acanhe e nem dobre a página. Porque agora sim acabou de começar.

Três, dois, um. Boa viagem!

Bernardo Biagioni

terça-feira, junho 23, 2009

Recado

Ah! Você de volta, que lindo. Triste desperdício veio me carregando tanta lucidez. Quanto desconforto bobo traz a lucidez. Nada de Cores, nada de Beijos, nada de Blues. Tanto desafago inoportuno, sem você que culpa assumo quando me entreolho perdido pelo Espelho? Agora deixe-me dançar assim dançando, velho tango malandro-cigano que antes não teve vez. Que saudade tenho dos nossos dedos cruzados, nossos corpos rangendo ossos com ossos, rosto no resto e beijo com beijo. E teus gritos... Teus gritos tão mudos, destemidos e imprudentes, calam toda a rua escura e pesarosa. Deixe-me responder você?! Tomar sua carta nos dedos, folhear as folhas sem medo e responder minha velha resposta. Se você soubesse o quanto que te amo, por ora. Estaria logo me esperando apaixonada lá fora.

Passo aí as 7.

Bernardo Biagioni

domingo, junho 14, 2009

Atrasos

Agora tudo que lembro é de ter o encontrado uma noite em algum bar movimentado da cidade. Estava sentado numa mesa dos fundos, fumava um cigarro branco e vermelho e soprava a fumaça como se tivesse desenhando alguma coisa no Ar. Levantou seus olhos, me viu, abaixou a cabeça novamente e continuou a pincelar o sanduíche com uma pequena garrafa de tempero. Pareceu uma eternidade aqueles meus passos tão calculados que me levaram da entrada até à sua mesa. Tomei a cadeira com os dedos, arrastei-a pelo assoalho e sentei com calma. Ele olhou-me nos olhos, segurou minhas mãos em suas mãos e sussurrou sem pressa: "Obrigado por demorar".

...

Ah! Quanta saudade existe desde então!

Biagioni Bernardo

sábado, junho 13, 2009

Olá Estranho

Aquele foi o último sorriso sincero deste século, isso eu posso garantir. Tão natural, verdadeiro e necessário. Ela, entre os dois lances de escada, parada, talvez encostada na parede, a bolsa caindo pela lateral esquerda. Eu, terminando de passar pelo último degrau, o rosto voltado para trás, o corpo tentando acompanhar os passos tropeçados sobre os passos. Sem mais barulhos, sem multidões, sem chuva, sem sol, somente o silêncio e sua música tão sua. Também sem Tempo, sem duração, uma eternidade, dois segundos tão inseguros de si. Certo de incertezas, incertezas nunca tão certas, medo, medo e medo. Ela corre os dedos pelos cabelos, posso ver que está tremendo, disfarça, nega, se entrega e não se entrega. Eu minto, digo que não é meu e tento me endireitar, ando e desando negando o que minha alma tenta dizer - Como posso ter me apaixonado assim?

quarta-feira, junho 10, 2009

Carta ao Vinícius II

(...) Tem-se falado muito em amor, sim. Mas de uma forma prosaica, enrustida e medrosa, não sei bem entender. E não tem a ver com a data dos namorados que vem aí, tenho certeza que não é isso. É porque, de alguma forma, tem alguma coisa no ar agora, entende? Estão todos muito êxtasiantes, apaixonados e considerávelmente tímidos, se posso descrever assim. Existe agora um certo sorisso, um pouco de quem já não chora mais. A tristeza, antes tão dura e fria, agora ficou linda, sabe?

sexta-feira, maio 29, 2009

Quatro

Existe algo de deslumbrante naquela rua. Mas não são os gatos apaixonados, aqueles felinos que gemem suas dores imaculadas pelos telhados desgraçados pela incompreensão do tempo. Também não tem a ver com aquela música que foge pelas entranhas do asfalto, todo aquele desaforo dançante que desanda o descompasso do vento. Eu falo sobre o cheiro, sobre uma tempestade de desamor meticulosamente especial que eleva os pequenos destroços da Vida em sinfonias oscilantes. Talvez seja culpa dos teus beijos, por vezes tão traiçoeiros no feitiço celestial de me tornar cúmplice dos meus próprios pecados. Não pode ser Justo sentir tudo que sinto quando minto todas as inverdades que perambulam pelos meus versos mais decentes. Talvez tenha também a ver com os meus anseios, que por aquelas bandas se bandeiam por caminhos tortuosos e longíquos. Existe uma liberdade naquela rua que não dá para descrever. Mas é algo simples e sincero que me prende e desaprende tudo que tento desfazer em palavras cuidadosamente selecionadas. São os nossos abraços desapertados pelo prenúncio de uma despedida, aquele momento fúnebre em que nossos dedos se tocam e se enconstam por uma última vez. Talvez seja ainda os teus sorrisos, tão reconfortantes que reduzem a sofridão humana a versos forjados de uma poesia. Talvez seja a poesia, pois. Essa que criamos e aprimoramos juntos aos beijos mais apaixonantes de qualquer esquina. Não é nada que não tenha graça, que não sorria e que não se entrega aos lamentos pecaminosos do mundo. São os nossos gritos mudos que desarticulam a dormência de um amor profundo.

Bernardo Biagioni

terça-feira, maio 19, 2009

UL,

O amor é uma dor silenciosa que chora baixinho em nossos ouvidos. Machuca tanto quanto conforta, fere, cura e desafortuna toda a sensatez que rege nossos verbos, versos e aspirações. É um grito frio e quente, abraça e abandona, vem e vai, vai e vem. Não adormece e não acorda, vive, mas por hora finge-se de morto, agoniza absorto na desilução de outrora. É eterno, mas dura pouco, cambaleia em tropeços castigados de paixão, queima e esfria, chora e canta para acalentar toda a alma. É meu, mas é nosso, dança e pára, corre e anda até se desfazer em lamúrias ríspidas e sorrateiras. O amor é um beijo, mas não vem em lábios, não se compra e nem se vende, não tem tamanho, mas é enorme. Não é serio, mas não é brincadeira, perde-se sozinho pelas madrugas de frio e traz consigo os primeiros raios do dia. Vem com o mar, mas não é onda, balança, naufraga, levanta e desanda o barco da Vida. É livre e é Livre, sua liberdade não tem formas, ama e desapaixona, bate e se debate entre corações desacordados. Não tem regras e não traz instruções, em cada corpo toma um efeito e em cada peito se revela são. O amor é tudo, mas isso diz pouco, foge e não volta, suas asas batem solitárias pelo Tempo. O amor sou Eu, o amor é Você. São os nossos braços dados no nosso medo de se perder. O amor é uma poesia e cada um inventa a sua, de todos os pecados é o único que não existe cura. O amor somos nós.

Bernardo Biagioni

segunda-feira, maio 18, 2009

Dois.

Agora que se foda. Já não fazem mais sentido todos estes versos, agora tão inversos no despropósito desatento do nosso tempo. Chega dessas lágrimas frias e densas, tanta dor tracionando o meu atento desalento. Quanta tristeza está incrustada no meu peito, um amontoado de despeito indócil que limita o meu caminho. Chega de todo esse pensamento febril, matam-me as lembranças imortais dos ontem e anteontem em que desafiamos a nossa infelicidade. Não posso mais insistir naquilo que sinto por demais, minha alma por si chora na inveja de outrem. Chega também do seu número, esquecerei comigo as minhas desventuras pelo seu doce e encantado futuro. Agora sim eu quero mais. Correr os dedos pelas petulâncias inseguras do mundo e dormir em paz com o meu desespero. Hoje, somente hoje, quero adormecer sem me apaixonar ainda mais pelos nossos anseios. Quero sorrir comigo mesmo e apagar sem pressa a tua imagem do nosso espelho.

Quanta bobagem escrevo quando tenho medo.

Bernardo Biagioni

terça-feira, maio 12, 2009

Rastros

Desde o momento em que você partiu, eu tenho me equilibrado bêbado. Fumo dois ou três cigarros por dia e tudo que escrevo acaba virando qualquer porcaria sucumbida na rodela da minha lixeira. Quanta merda passa pela minha cabeça. Tenho desenhado a nossa pequena distância em cadernos recheados de saudade. Sinto meu corpo sentindo em silêncio os seus lábios caminhando sorrateiramente pelo viés da nossa vontade. Quanta vontade existe entre nós dois. Hoje errei a minha agenda mais uma vez, todas as minhas datas ficaram ultrapassadas pelo depois. Não consigo falar tudo que quero e tudo que disse já não diz tudo mais. Agora estou rouco, louco e tudo que digo fica pouco perto do que passa por aqui. Meu corpo inteiro está em chamas, correm por minha pele lâminas ensandecidas pelo crepitar do fogo. Quando, pois, nos veremos de verdade de novo? Dar os braços aos abraços e recomeçar o nosso jogo? Este tempo sem você já começa cedo a ficar demais. Mas ver como estamos nos vendo eu já não quero mais. Eu quero é mais.

Bernardo Biagioni

domingo, maio 10, 2009

Carta ao Velho

Estranho mesmo está agora, com esse tanto de rostos distorcidos e excessivamente sorridentes. Lembro de quando o sorriso era sim um pecado malevolente, a Igreja condenava os beijos roucos e todo este bacanal que assola a nossa vizinhança. Não havia nada de abraços, todos os braços andavam desatados pelo pudor conservador que confabulava pelas professias do Santuário. Hoje tem-se aí esse tanto de moleque pelado, as cousas balançando como gingam as ondas do mar enquanto as menininhas se desdobram em suas maturidades promíscuas. A garota de Ipanema está rebolando, "Seu Vinícius". A gente tá precisando se virar também.

Bernardo Biagioni

segunda-feira, maio 04, 2009

...

Acabou. Como um tiro, um grito surdo do tempo que não veio para negociar. Acabou assim como acaba o ônibus que dobra a esquina da estrada para então correr pelas entranhas dos campos desfloridos pelo outono impieodoso. É como qualquer outra despedida, mas dessa vez é a Sua despedida. É o fim dos tempos, o suspense inapropriado mesmo ao cinema imundo, a alegria entristecida do fio de água que brota pelos poros das rachaduras do deserto. Dói por cada pedaço do corpo, dorme no escuro profundo da minha garganta um nó miseravelmente desconfortável. Agora existem lágrimas entaladas em cada uma das minhas cordas vocais. E também não há muito o que dizer. Acabaram-se os versos, os perversos sorrisos que sorrimos para o mundo, foi-se a última madrugada quente do ano. Acabaram-se as músicas, os perfumes e os abraços engatados pela incerteza do amanhã. Resta agora todo este pranto, nobre acalanto desumano que brinca pelos meus tímpanos cambaleantes. Resta um medo terno e frio como as estrelas que perambulam pelos céus esquecidos. Amanhã desapareceremos na descrença de nós dois, sumiremos pelos quilometros tortuosos que atravessam nossos lábios dormentes. Amanhã seremos ontem, nossos sorrisos serão fotos e nossos beijos se perderão na desesperança. Amanhã morre Nós dois e Eu e Você estaremos mais uma vez condenados a viver como se jamais tivéssemos existido.

Quanto tempo durou o nosso tempo?

Bernardo Biagioni

quarta-feira, abril 08, 2009

1995


Ainda é cedo
pra falar
mas quando mais tarde
estarei por lá

--------------

Estou viajando
para dentro
daqui eu vejo
o coração passar

--------------

Sete aqui
Sete vai lá
se velho me fôr
não morrerei acolá


Bernardo
Biagioni

quinta-feira, abril 02, 2009

Amém

P: Beba, pois, deste cálice de Vida que vos ofereço. Tomai e bebei este meu corpo, deposto a ti como viés mercadoria do nosso obsoleto destino. Daí graças e me abrace. Quero sentir o fogo atracar os nossos trapos em chamas ardentes. Que seja feita a vossa vontade, meu bem. Venha a mim sem pena e nem misericórdia, quero que lavre nossa discórdia e escarne os infortúnios segundos de nossos desencontros. Quero arrepiar-lhe os pecados, depois. Antes beijaremos sob o atento realento da cúpula cósmica que rege nosso Universo. Seremos Nós enquanto não formos Sois, quero que compartilhe a Minha carne com a Vossa eternidade.

Confesse, mais tarde. Aquiete os demônios atrelados aos seus órgãos animalescos e adormeça. Seus pesadelos arcaicos estão em singular harmonia com a fé que anima vossa sabedoria. Tenha fé, sempre. Porém atente-se ao véu negro que desfila pelo seu sedento pensamento. Liberte-te, sim? Comei deste pão sacro e milagroso que tanto lhe rogo em poesia. Quero que sorva dos versos pecaminosos que escorrego por sua alma purificada.

Sinta-te, enfim, amada. Volte seus olhos pretos aos céus e agradeça o prazer indócil que tange o seu momentâneo tormento. Viva este momento. Enrole o seu terço sobre o terço do seu corpo que não chora e se recomponha. Deixe que seus traços arrepiem o arrepio indolente que percorre suas expressões carnais. Dai graças e aleluia, finja que esta carta não é sua e saia sem cinismo. Bata a porta, corra nua pela rua e dependure pela ponta a conta do nosso dízimo. E não te arrependa não. Não olheis os vossos pecados, mas a maré que desabrocha em tua manta. Toda sua reação reflete Nossa nobre tração resvalecida nos quatro cantos da minha cama.

T: E que o Amor esteja convosco,

Bernardo Biagioni

terça-feira, março 31, 2009

La Bella

Ah! que saudade tenho do teu corpo. Sentir meus pulsos reverberarem as frações sanguineas que labirintam-se pelas suas fiações carnais. Que falta me faz o teu cheiro. O sabor animalesco do pecado correndo pelo viés do nosso desatento pensamento. Como queria arrepiar-lhe os desejos. Tornar Sua alma diante da sagrada profananidade da Nossa alma. Por sua culpa, oh tão grande culpa, não gozaremos das impurezas profundas deste nobre momento. Dormiremos como dois enquanto poderíamos sorver o tempo de um só. Nunca toquei seu rosto, não vê? O pobre desgosto dos nossos desencontros perpetuaram a ternidade de nossas desavenças. Que vontade tenho de você. Abraçar-te junto aos gotejos de chuva que brincam na parede da janela. Ainda vejo nos meus olhos os teus olhos. Sinto-me como um convidado imperfeito para seu banquete celestial. Que triste, pois. Esqueci o meu límpido convite n'aquele próspero temporal que imaginei para nós dois.


E agora?

Quando te vejo?


Bernardo Biagioni


quarta-feira, março 25, 2009

Neal I.

Ele está parado contra o vento e contempla o horizonte sem sorrir. O cabelo estirado sobre o rosto avermelhado e os olhos atentos aos pequenos destroços envoltos na brisa que vem do mar. Não tem medos e seu último pesadelo fora interrompido sem temor. Mastiga um galho fustigado e tem as mãos sujas escondidas no jeans surrado pela maresia. Ele fica ali parado e está respirando devagar. Suas narinas bem recortadas se dilatam pausadamente para receber o cheiro de Vida que desce timidamente pelas montanhas perdidas na curva da esquina. Ele não sabe, mas eu sinto. Qualquer um vê que Neal está vivo.


Bernardo Biagioni

segunda-feira, março 09, 2009

Homens, álcool e poesia.

Vejo-a de longe, caminhando pelos corredores da vida. Tem o cabelo a pique, como se tivesse deixado a cama a pouco, e suas palavras saem pelo canto da boca com preguiça. Quando anda, parece leviana, se arrasta pelos azulejos gelados do chão como uma puta mal paga, viciada e corroída até os tímpanos pelas últimas doses de vinho tinto sorvidas na madrugada. O cheiro de nicotina corta seu perfume vencido, toma banho duas vezes por dia para esmorecer o THC que se impregna por seus fios de cabelos ruivos. Sua roupa está tão amassada que deve ser a mesma da semana passada – seus trapos estão em farrapos descompassados pela malevolência dos dias, culpa das noites prostituintes dos cabarés que não funcionam mais. Tenta sorrir, mas tem vergonha dos dentes verborrágicos e doentios, sua felicidade está ultrajada e ultrapassada pela sua jovialidade reprimida que se definha len-ta-men-te. Seu coração bate como uma pedra, range no peito como uma má orquestra e produz um fogo que não lhe queima a alma. Não ama mais e esqueceu todo o sabor da paixão, sua última história não foi mais que provisória e assim se conforma, então. E olha para mim como se eu tivesse o dom da cura, quando está por perto se sente segura e não quer me largar. Longe de mim não reprime o riso, parece livre e não liga para nada disso. Eu não me importo até olhar os seus chinelos, duas tiras de borracha recortadas e anexadas a um pedaço de flor. E pelas canelas ainda se nota alguma peripécia, parece um cadarço de cor amarela que envolve sua perna até chegar aos joelhos judiados pelo tempo que esteve ‘andando por aí’. Vejo-a de longe e parece apenas um pedaço de ser humano, funciona vinte e quatro horas por dia como uma expressão póstuma dos sacolejos verdadeiros da vida, um maltrapilho maltratado pelas desavenças do cotidiano. Não pensa mais desde quando descobriu a cola, a droga e o carnaval – Nos últimos dois anos esteve atravessando a rotina do mundo como um nobre vagabundo sem ter onde repousar. Vem se aproximando devagarzinho dançando, para ela todo dia é dia de tango, e tenta me abraçar. Recuso seu abraço com meus braços e reclamo do mau-cheiro – estamos diante do banheiro e as minhas narinas não estão se contorcendo com o cheiro que vem de lá. A culpa toda é dela, que tem essa língua depravante, rígida e seca, feito uma madeira imperfeita lapidada diretamente na encosta de uma árvore deposta. Mas antes de tudo, é uma boa pessoa, chega cedo, não se demora, e logo se esvai pelas entranhas da cidade. Não tem bondade, eu sei, mas a sua única maldade está na repulsa estúpida de não gozar dos prazeres vis do mundo. Em certo ponto ela até se parece bastante comigo. Fica assim sentada na cadeira, dura e muda, cultivando e se alimentando de versos esdrúxulos e inverossímeis de um poeta que não se formou em poesia. Ela sorri quando a noite se pronuncia por entre as colinas, mas a verdade é que ainda não sabe nada sobre homens, álcool e alegria. Sua sabedoria dura tanto quanto o cigarro que fuma, cada trago é uma despedida de sua vida solitária, imunda e desmerecida. Quanta merda bebe essa menina.

Bernardo Biagioni

sexta-feira, março 06, 2009

Calorzinho

Não faz mal. O calor que desce pela atmosfera é tão quente que você tem a ligeira sensação de que pode Tocá-lo. A palma da sua mão escorrega pela testa para conter o suor, mas a água densa se esquiva e se infiltra pelos poros dilatados dos seus dedos. A sensação que fica é de impunidade – Nada que você fizer poderá suprir a vontade desumana do Tempo de arrancar-lhe a serenidade mental. E então você tenta desfazer tudo em um sorriso. Escancara os dentes para driblar as condições climáticas e se engana intimamente de que será capaz de sobreviver. Mas aí vem mais uma rajada de vento pela lateral, a brisa que atravessou e derrubou a Serra avança rapidamente até ganhar cada extremidade do seu corpo. Subitamente sua alma é acometida de um desejo carnal, o cheiro de esperma que vem dos prostíbulos corre pela avenida larga e desafoga entre suas narinas castigadas. Suas genitais respondem aos desejos profanos do mundo, são duas e meia da tarde e você luta contra uma vontade avassaladora de procriar a espécie humana. Mas passa. Uma respiração profunda resguarda sua sobriedade por mais alguns instantes – A porra do sinal de trânsito não quer ficar verde e você quer matar o filha da puta que projetou aquela merda. Agora, então, é a vez do ódio se apoderar dos seus pensamentos. Seus olhos ficam vermelhos e suas mãos começam a tracionarem um movimento majestoso - Você quer dar um soco em alguém. Aí parece que Deus está de sacanagem com você porque, do nada, aparece um guardinha da BHtrans para reger toda a orquestra do Trânsito. Mas você não pode ser preso e toda sua vontade de encaixotar a Autoridade se rende a um sorriso forçado. As lágrimas começam a correr por seu rosto e rolam pelas estrias nojentas que dominaram o seu ventre. O desespero provoca uma alucinação perigosa e sua visão turva passa a enxergar as chamas do Inferno. São quase três horas da tarde e você quer dar um tiro na própria cabeça. Mas não faz mal. Logo essa vontade iminente de dar cabo ao Universo acaba. Você pára e se encara pelo retrovisor e tenta tranquilizar a situação: "Eu amo esse calor". Aliás... Todos nós amamos esTe calor,

Não é?


Bernardo Biagioni

quinta-feira, fevereiro 26, 2009

Reflexos

É bom quando vem em ondas. O raio desce pelas têmporas, rasga o tímpano como um ruído até desaparecer em uma tontura titubeante. Oscila entre temperaturas flamejantes e esfria as condolênscias do corpo. Imploramos que não, mas continua descendo pela traquéia, chega aos pulmões e, fica então, se debatendo efusivamente nas quatro paredes de alvéolos. Quando começa a ficar melhor, logo vem o pânico, o suor e a ansiedade.

Mas o pensamento ponderado resguarda sua segurança psicoátiva e você sabe que sua respiração já já irá voltar. Aí o corpo responde, o coração volta a trabalhar e as pernas sentem-se úteis novamente. Os céus que estavam fechados se abrem e as nuvens que filtravam seu horizonte se desfazem na rua como gotas cambaleantes de chuva. O que eram rugas, vira sorrisos e o que era dor, vira clamor.E, em segundos, tudo acaba, sua visão não é mais turva e as mãos sentem ânimo novamente.

Agora, então, você pára e respira. Seu corpo treme e agoniza até a verdade atravessar a sua mente sem anseios. Você está de frente para o espelho e não quer mentir para si mesmo: "Eu preciso de mais uma dose de beijos".


Reflexos,

Bernardo Biagioni

terça-feira, fevereiro 17, 2009

Carnaval/Carta I/Resposta I

De: Bernardo Biagioni
Para: Raul Sampaio

Carta I

Pode ficar tranquilo que já estou preparado para o Carnaval. Acordei hoje cedo e montei os dispositivos que manterão os morcegos afastados do carro. Vamos precisar de água. Muita água. Receio que vamos nos perder pelo caminho, mas também tenho estudado alguns mapas. Acho que renderá uma boa história, se você quer saber. De repente uma reportagem que poderá mudar a vida das pessoas. Coloquei na mochila alguns livros que podem lhe interessar, inclusive o Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. Vamos precisar de ajuda profissional para conversar com aquelas meninas do campo. Ah! Não esqueça da barraca. Tentei conversar na pousada hoje e me falaram que o estabelecimento havia sido alagado na última madrugada. O mais estranho é que a última vez que choveu naquela região foi em Junho do ano passado. De qualquer forma, o sujeito que me atendeu lá do outro lado não parecia estar mentindo. Eu sentia correr pela fiação o pânico que regojizava sua espinha vertebral.

Hoje cedo, passei no supermercado e garanti alguns alimentos - Estão falando que até o final da semana não haverá muito o que comer por aqui.
Já separei uma quantidade exuberante de pilhas. Serão necessárias muitas horas de energia. A sua fantasia de dançarino também já está empacotada. Não encontrei o chapéu de marinheiro, mas vou procurar amanhã cedinho. Fora isso também tem os CDs. Pensei em deixar alguns discos aqui, acho que não precisaremos de nada muito pesado nos próximos dias. Selecionei uma grande quantidade de músicas caribenhas, havaianas e cubanas. Também vou levar Jorge Ben, Bezerra da Silva, Adoniran Barbosa e Gotan Project - As garotas podem ficar a fim de dançar um tango mais acelerado quando a noite cair. O violão vai ficar. Assim que chegarmos, podemos invadir uma loja de instrumentos e recolher tudo que for necessário. É Carnaval, o dono não vai nem notar. Tem ainda as vodkas, as cervejas, a tequila e o Rum. Pensei em misturar tudo e levar uma garrafa só, mas uma atendente de telemarketing me aconselhou que não seria uma boa idéia. Bom, como eu disse no começo, já estou preparado para o Carnaval. Não ha com o que se preocupar - Logo,logo estaremos sentados no carro e poderemos sair acelerando por aí.

Ciao,

Bernardo Biagioni
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De: Raul Sampaio
Para: Bernardo Biagioni

Resposta I

Maldita memória essa sua hein?! Ainda bem que estou aqui cuidando do resto, senão... Bem, senão seria melhor nem imaginar.

Eu te avisei! Deixei até um bilhetinho na maçaneta da porta: "LEVE CAMELOS". Ninguém deve subestimar a utilidade de um animal desse porte. Caso não saiba, camelos podem ficar meses sem beber água. Dizem por aí também que eles nunca se cansam. E, caso ficarmos perdidos (posso ver que você, como eu, já está contando com isso. Ainda bem!), podemos nos alimentar da carne deles. Crua. Claro.

E, outra: Invada a loja de eletrônicos hoje de madrugada. Lá pelas 00:22, ou qualquer outra hora que ninguém suspeitaria. Pegue o máximo de gravadores que achar. Com certeza eles têm vários por lá. Digo isso pois cresci por aquelas bandas. Se te pegarem, não fale nada! Ou melhor, fale, mas seja breve. Diga que estava a procura de comida, mais precisamente, de sorvete. Não tem como, eles vão acreditar...

Gravadores roubados.
Riffs virtuosos.
Calças de couro coladinhas.
Mulheres peitudas.

Estarei acampado em frente a minha casa te esperando.


*Não acredito que aqueles dois canibais fumadores de erva vão nos acompanhar. A responsabilidade é toda sua!

Raul Sampaio

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Viva você.

JustificarViva a música, meu amigo! Viva tudo que foi cifrado, composto, rotulado e refutado. Viva a poesia, gente fina. Viva tudo que virou sinfonia, traços suaves no descompasso da nossa melancolia. Viva as drogas, os doces e as plantas, vamos colocar tudo ali na varanda e chacoalhar os cabeções. É isso aí, viva fazer a cabeça, fazer com que tudo isso enlouqueça sem deixar vestígios. Viva tudo que foi sofrido, o que não foi sofrido e o que vamos sofrer. Viva sim o sofrimento, é este aí o mais útil tormento para te tornar feliz. Viva a felicidade, então! Viva a vaidade, os perfumes e a lipoaspiração. Viva os quilos a menos e os quilos demais. Viva o surfe, o skate e a onda. Viva também o futebol, desaconselhável besteirol para quem quer chorar nos finais de semana. Viva os destinos, o destino e o destinatário. Viva os versos, os inversos e o contrário. Viva os desencontros, os encontros e os outros contos. Viva o cigano, o malandro e o brasileiro. Viva os Beatles, o Zeca Pagodinho e o Tom Jobim. Viva tudo que é latino, tudo que for assim. Viva o samba, o merengue e o mambo. Viva a salsa o blues e o tango. Viva os sorrisos, os rostos e as maquiagens. Viva os beijos, os lábios e as carnes. Viva os abraços apertados, as despedidas e a chegada. Porra, Viva também a estrada, a minha última namorada que não abandonei. Viva a verdade, as mentiras sinceras e os carnavais. Viva o sóis, as luas e os temporais. Viva tudo, meu amigo.

Viva você!

Bernardo Biagioni

quinta-feira, janeiro 22, 2009

Aulas de Mergulho

Bateu? O trago correu pela garganta até desaparecer pela goela irritada – Essa merda de febre segue arrancando meu fôlego desde anteontem. Então vieram os primeiros raios, uau, o céu mergulhou na terra como os aviões de caça fazem, as nuvens rasgaram no ar como serpentinas enfurecidas pelo Carnaval. De repente tudo virou uma maldita guerra, escondam-se, escondam-se, os vermes alemães estão nos procurando mais uma vez, tudo está cinzento, o cheiro de Pólvora corre pelo ar livremente enquanto todos os destroços são sucumbidos pelo poder do fogo. Trégua. Agora só a garganta seca de novo e tudo continua rodando. A culpa é do quarto, ninguém em consciência sã pode trabalhar em um aposento assim. Malditas garrafas, como vieram parar aqui? Tirem tudo, ouviram, tirem tudo, sumam com esse álcool!

E que cor é esta? Verde, amarelo e vermelho! Esse vermelho está demais, alguém tente acerta-lo com um tiro!!!!! Olha lá, seu guarda: A merda do sinal de trânsito está pegando fogo e você preocupado com um...Cheiro! Pode procurar, pode procurar - Você não encontrará nenhuma resposta em formato físico por aqui ha ha ha. Agora eu me sinto mais livre do que antes. Posso até chegar até o semáforo e apaga-lo com a minha Sede. Liguem para os bombeiros! Está tudo resolvido, eles podem ficar em Casa, agora.

Por que você está rindo? Vou colocar os fones de ouvido porque assim eu posso te ouvir Melhor. Mas a música cresce demais, está aumentando e aumentando, segurem ela que ela vai sair voaaaaando! Olhem só, o mesmo guarda de novo e ele está SEGURANDO a música com Uma mão! É o Dylan, seu Guarda! O Dylan está me ensinando a dar no Tranco, Decolar e curtir um Barato, sabe como é? E de repente as Portas ficam todas abertas, entende, policial? Eu posso ver o mundo infinito, tudo está ao meu alcance, só preciso Mergulhar para enxergar o que não via Antes. E a cara do Guarda começa então a se desfazer como se alguém tivesse embaralhado a superfície tranqüila de um rio. Cadê o meu Reflexo, cara? Eu não estou vendo mais nada neste maldito espelho! Opa! Quem é você? Quem É você, seu Estranho! Você não estava aqui antes! Estava?
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Bernardo Biagioni