sábado, novembro 21, 2009

música um

Escute antes de recusar porque você precisa ouvir com cuidado cada uma das palavras dos versos, do começo ao meio e do meio ao final. Apague a luz, feche a porta e se precisar até dependure um aviso na maçaneta dizendo que você está mesmo ocupada, muito ocupada, e que não quer ser incomodada pelos próximos três minutos e quarenta e cinco segundos – ou talvez um pouco mais. Respire o silêncio com calma e deixe - ao menos por agora - que nada mais exista além do vento que existe lá fora, da noite que existe lá fora, onde tudo está cuidadosamente brilhando, cintilando e fervilhando. E não é para sofrer ou para se apaixonar. Escute apenas para poder ouvir o que eu ainda não sei cantar.

Bernardo Biagioni
all at oce.

quinta-feira, novembro 19, 2009

Verde

Posso sentir na sua boca a vontade que nega ter, em cada um dos seus silêncios há uma tentativa de disfarçar o amor que sente entre o lado esquerdo e direito do seu corpo. Nunca se entregou por inteiro – nem para mim, nem para ninguém – sobretudo porque tem medo de acabar se perdendo de si e de tudo que aprendeu com o mundo. Então inventa horários, insiste em despedidas e vai embora tão rápido como quando chega. E não sabe, mas eu tenho certeza: fugindo de mim, inevitávelmente também foge de si mesma.

Bernardo Biagioni
CCR - Green River

terça-feira, novembro 17, 2009

Amanhã

Ainda vai me agradecer por tudo que andei escrevendo, pelos convites que estive arriscando, por todos os encontros que desperdiçamos e por todos os caminhos que cruzamos em cada uma das noites quentes e frias das últimas duas estações do ano. Vai me agradecer quando colocar a cabeça para fora enquanto estiver dirigindo e sentir o vento atrapalhar os seus cabelos, e vai lembrar de nós dois quando ver pelo retrovisor o sol se pondo enquanto a cidade mergulha bem lá no fundo, calmamente. Será agora, amanhã e para sempre, refém das nossas lembranças. E por mais que negue, não se entregue e se esconda, enquanto houver vida, existirá saudade.

Bernardo Biagioni

segunda-feira, novembro 16, 2009

Partidas VI

Depois do primeiro ou segundo beijo, ela pediu para parar. Mergulhou os olhos no chão com tristeza, passou a mão esquerda por cima da orelha para arrastar o cabelo e ficou brincando com pés embaixo da mesa, indo e voltando. Lembrou uma música – a nossa música – e cantou baixinho, bem baixinho, exatamente como tinha cantado pela primeira vez quando ainda estava na quarta ou quinta garrafa de cerveja de uma outra sexta-feira. Esperou em silêncio por três ou cinco minutos - respirando e disfarçando - para enfim ter coragem de perguntar: “Quando você vai?”

Bernardo Biagioni

quarta-feira, novembro 11, 2009

17

Perto de meia-noite e ela continua deitada com as mãos apertando os lençóis, sente frio, sente calor, sente o vento que conseguiu entrar pela porta, pelas frestas da porta, e sorri uma, duas, quatro vezes. Atravessa os dedos pelos cabelos com calma, desliza a palma dos dedos pelo pescoço tentando sentir que está mesmo sentindo tudo e apenas deixa que as pernas possam mesmo tremer, assim como treme o mundo. Esses são os dezessete melhores segundos de sua vida e ela sabe bem que pode demorar a se repetir. Sobretudo enquanto estiver sozinha.

Bernardo Biagioni

Viajante solitário

Pegou o que tinha na gaveta, o que tinha para vender - pegou até o colchão – e colocou tudo na varanda esperando alguém aparecer para comprar. Tinha decidido, há vinte e cinco minutos, que iria sair fora a qualquer custo e que se não fosse agora nunca mais seria capaz de ir embora. Deu um beijo no pai, dois na mãe, escreveu três ou quatro cartas e saiu pela porta arrastando a mala no chão, ansiosamente preparado para ver para ver tudo, para ver o mundo, e se sentir em casa.

Bernardo Biagioni

segunda-feira, novembro 09, 2009

Casebre

Fica difícil de imaginar o que ela viveu nos dias em que esteve se escondendo no meio do mato, perdida em um casebre de madeira, escutando pelas frestas das paredes o barulho da cachoeira, o barulho da noite, o grunhido dos morcegos. Sem ter vontade de dormir, sem ter hora para acordar, colocando para dentro doses incontáveis de álcool, tragos ininterruptos de cigarro e respirando poesia, respirando vida. Cambaleante, mas nunca bêbada o bastante a ponto de não saber dançar, de não saber valsar com as tristezas contidas que tinha deixado para trás na cidade. Puramente feliz - e verdadeiramente feliz – e por isso cantava e proclamava os traços e compassos do tempo, do vento, e do calor imensamente quente que invadia a madrugada sem calma, sem cautela. Nunca sozinha, mas eternamente solitária, de dentro do casebre ela esperava o dia amanhecer para que nunca mais precisasse dormir. Foram dias de despedidas, de fugas e de pouca saudade. Voltou ontem ou anteontem. E nunca mais vai ser a mesma.

Bernardo Biagioni

para nós

Saímos às sete da tarde, quando o sol não estava mais lá no alto, paramos no começo da estrada para encher os tanques e abastecemos tudo – sobretudo nós mesmos – e nos despedimos de tudo que podíamos deixar longe por quantos dias fossem necessários. Escolhemos o destino no caminho, marcamos com um xis no mapa, e prometemos que não conversaríamos nada que não fosse só com os olhos enquanto estivéssemos juntos, e apaixonadamente juntos. Tínhamos, eu sei, o menor tempo do mundo. Tínhamos apenas todo o tempo do mundo.

Bernardo Biagioni
Rogerthat - Use Your Heart