quarta-feira, outubro 03, 2007

(P)ode à Loucura

Versos viciosos sendo suspirados pelo canto entreaberto da boca. Em contato corriqueiro com a conta-cultura deixei-me alienar pelos seus preceitos mais vis. Meu cérebro definhou ao som do violino que tingia as vibrações do ar, feito um timbre covarde percorreu todo o espaço vazio corrompendo minha vaga lucidez. Se regares bem o manicômio da minha alma encontrará vestígios de inteligência, pipocada pelos cantinhos escuros da silhueta levemente apagada dos pulmões. E se regares também o assoalho que sustenta meus pés fará com que brotem mudas e mais mudas de uma droga esverdeada. Tenho sede, e só encontro alívio na garrafa de cerveja vazia que é chutada pelos quatro cantos do quarto à medida que traço meus passos. Esqueci-me das regras precisas de estruturação de uma ode, e por isso me abstenho do dever moral de permanecer pelos padrões. Estou completamente louco, as mãos tremem no ar, e se não fosse pela sua materialidade, estariam em reverberação, em um efeito semelhante ao eco, embora tenham espaçamento de tempo mais breve. Por um momento julguei estar flutuando, e me privei da vontade intima de chegar ate a varanda, sobretudo para ver de perto o barulho incessante que corre pela rua. Se estivesses maluco também compreenderia melhor o meu estado, e talvez caísse em gargalhadas ao meu lado, por motivos até então desconhecidos. Mas malucos só são prazerosos quando maluco estamos, daí o meu interesse por hospícios. Sairia em fuga agora por aquela porta surrada com uma madeira velha, de uma tipóia qualquer, mas tenho substancias correndo pelas minhas veias que retardam os meus atos, físicos e psíquicos. Em outro momento levaria Raoul para passear, mostrar que posso ser tão descrente quanto Ele, a começar por esta prosa que de ode não carrega nada, e que talvez por isso, não consumará um bom final.

Vamos Raoul, vamos!


Dellazzart.

Biagioni.

domingo, setembro 09, 2007

Eu te Amo

Cansei do espelho. Está trincado nas laterais, e é pequeno demais para que eu possa enxergar meu corpo inteiro. Tentei me afastar um pouco, buscar um ângulo bacana, mas não adiantou. Bem perto conseguia notar as olheiras no rosto, abaixei a luz, coloquei meu corpo na penumbra que formava no canto da parede, assim ficava bem. Estiquei o papel na mão, completamente amassado, as fibras retorcidas pedindo misericórdia, e as letrinhas desaparecendo no suor dos meus dedos. Repeti a frase escrita para o espelho, devia ser a vigésima vez que tentava, mas os tropeços continuavam. Não sou gago, pelo menos, não era. Arrastei alguns passos pela casa, fazer jus ao sentimento vanglorioso que corria pela minha alma, à ansiedade que consumia o vestígio de cor do meu corpo. Sim, estou branco, o sangue que deveria oxigenar o meu cérebro saiu em fuga para as pernas, como se quisesse dar vida própria à elas, e somente a elas. De novo o espelho, a mesma expressão. O homem que estava ali era bem diferente do meu eu, a palidez, a magreza, e o olhar cansado não faziam parte de mim. Corri meus olhos para o papel, tremia no ar, como se dançasse uma musica de ritmo acelerado. Respirei todo o ar da sala, e algum outro que vinha pela varanda, enchi os pulmões, era agora: “eu...te...te...”. Não consegui, e gritei, gritei tão alto a minha fúria que no segundo anterior uma onda de vergonha desceu corando a minha face. Olhei para aquele pedaço de celulose na minha mão e senti ódio, era tudo culpa dele, miserável! Sem hesitar rasguei-o ao meio, e deixei que caíssem ao chão. No mesmo instante uma brisa forte invadiu pela janela, levantou com força os dois pedaços de papel e a poeira do tapete. Os dois ficaram a bailar no ar, livremente, uma musica tão suave que não sairia tão sensata se fosse transcrita para uma orquestra. Por fim, romperam com a barreira que os separavam no mundo, da liberdade plena, alcançaram o parapeito da varanda e pularam alegres. E eu fiquei ali assistindo, o “Eu te” caminhando para um lado, e o “Amo” dançando para o outro. Suspirei uma coisa qualquer enquanto esperava que eles desaparecessem no horizonte, e depois me perguntei se eles iriam se encontrar de novo, em um lugar qualquer, nos lábios de um amante, ou nas canções de um outro povo.

Eu te amo.


Bernardo Biagioni

domingo, agosto 26, 2007

Conto de Fadas

Apaixonei-me por este verso. Sim este, de apaixonar-se. É que achei-o dentro de uma caixa, dessas de sapato, que a gente coloca debaixo da cama, para juntar fotos, cartas e poeira. Apaixonei-me pela foto que não temos juntos, pelo numero de seu telefone que não foi salvo na minha agenda. E sofro, mas me apaixonei por esse sofrimento, tão digno, tão humano. Por vezes chorei, mas foi de emoção, deixei que as lágrimas escorressem pela minha face livremente, contornassem sozinhas o meu nariz, a boca, e pulassem alegres pelo queixo. Apaixonei-me pela minha janela, coloco uma musica no fundo, e fico dançando, olhando as luzes da cidade brilhar, como se piscassem para mim. Sorri, e estou sorrindo, não que estejam prontos para tirarem uma fotografia minha, ou que alguém tenha contado uma piada. Mas sorrio, para a vida, para este verso. Ainda sinto o cheiro dela, apaixonei-me por ele. Sim, tomei banho, embora quisesse intimamente cultivar esse perfume para sempre em meus pulsos. Abracei meu travesseiro, senti vontade de ter um desses ursinhos, e não fiquei nada nervoso quando notei que não tinha sono. Contorci meu corpo nos lençóis, olhei para o teto, deixei meus olhos acostumarem com a escuridão, para assim desenhá-la no teto, com a alegria que escoava pela minha alma. Apaixonei-me por essa escuridão, em outro instante, tão negro, agora, tão claro. Pois sim, não temos mesmo fotos juntos, versos em comum, ou mesmo o numero do telefone um do outro. Mas, temos o tempo. Apaixonei-me pelo tempo, embora tenha ódio dele por ter levado-a consigo. Mas ele me disse para ficar tranqüilo, que se depender dele, uma linda historia vai ser escrita. E eles, ou nós, não seremos felizes para sempre, mas, sempre felizes. Sempre.


Bernardo Biagioni

quarta-feira, junho 20, 2007

Maria

Atravessei a vida feito uma locomotiva desgovernada, escorrendo tropeçada pelos trilhos já velhos. O lápis na mão, como se estivesse pronto para escrever a melhor historia da minha vida. O vento no rosto, os cabelos caindo sobre os olhos e os ferindo, alfinetando a córnea seca. Sorria, e o esmalte dos meus dentes se desfazia, ia se destituindo, escoando pelas laterais estimulando as enzimas digestivas. Pela janela via o meu passando correndo, uma seleção de imagens que compuseram meu itinerário até então. A trilha sonora sucumbia o tempo frio, era alegre, as moléculas de ar suspensas na atmosfera bailavam em sincronia com os acordes do piano. Arrastei meus pés para o centro do vagão, fechava os olhos e sentia uma gafieira sustentar meu corpo, conduzindo meus passos em movimentos que não seria capaz de refazer. Convidei a linda dama da poltrona da frente para o tango que começava a tocar, ela estendeu a mão enquanto abaixava a cabeça para conter os rosados pintados em sua face. Apertei-a no peito, conduzi seu corpo até a parede oposta, e empurrei seu busto rente ao chão, enquanto colocava minha perna direita sobre as suas. Vi-a sorrir, mas logo voltou com aquele ímpeto no olhar, um mistério do qual ainda procuro menções. Arrisquei um passo novo que acabara me colocando ao chão. Acordei com as têmporas doídas, um amontoado de carinhas me encarando com curiosidade. Não sei se fora tudo uma ilusão desvairada, ou se havia mesmo escutado aquele tango. Mas a locomotiva seguia, e a única melodia era da Maria Fumaça que pela noite gritava se perdendo.


Bernardo Biagioni

quinta-feira, junho 14, 2007

Pintura Desgraçada

Deitou-se lentamente de bruços e me estendeu com a mão direita uma caneta preta. Olhei-a com curiosidade, fitei seus olhos que se dobravam na minha direção. Confirmou em um aceno com a cabeça que eu estava pensando certo, queria que desenhasse em suas costas, deixasse correr a tinta negra sobre sua pele branca macia. Fechei os olhos, abrumei o objeto sobre sua nuca, enquanto ela afastava os cabelos para as laterais. Arrepiou, sua pele explodiu em pontinhos espaçados, visíveis claramente a olho nu. Não sabia se devia continuar, ela olhou, consentiu com os olhos turvos, dilacerados de prazer. Fui deslizando a tinta por sua medula, sentindo cada vértebra, cada pulso de seu corpo se deliciando com o toque. Cheguei até a cintura, e nesse momento, senti um calafrio descer feito um fio terra por seu corpo, morrendo nos dedos dos pés. Sorriu, não que eu tivesse visto, mas o tempo havia sorrido, seu corpo balançou num gemido silencioso, mas barulhento o bastante para acordar os meus devaneios. Ela virou a cabeça para o lado com dificuldade, pediu que eu me aproximasse. Beijou-me a bochecha, o pescoço, sentia sua alma escorrer pelo canto entreaberto da boca, que exalava desejo. Tomou a caneta da minha mão, jogou-a fortemente contra a parede e me empurrou para longe. Ergueu-se, levantando consigo o lençol e os segundos que antecederam o beijo. Meu corpo recuou, cada pedaçinho passou a sentir medo, insegurança e frio. Chegou bem perto, olhou-me por dentro dos olhos, alcançando a retina, e a imagem que se formava antecipadamente me fazendo míope. Atravessou a minha face, colocou sua boca ao lado do meu ouvido e deixou escoar uma frasinha que ainda fere o meu tímpano: aprenda a desenhar.

Feito isso, saiu sorrindo.


Pintura Desgraçada.


Bernardo Biagioni


terça-feira, junho 12, 2007

Adeus!

Estou partindo. As malas estão prontas, o destino é incerto. Carrego comigo um pedaço daquele teu sorriso, dos seus - “bom dia” - tímidos corridos pelo canto da boca. Levo nos meus braços os seus abraços, tão firmes e inseguros, como quem segura um copo cheio de água na mão. Não hei de chorar, sou homem demais para sustentar essa separação como algo natural, que deveria acontecer cedo ou tarde (snif). Tenho as pernas trêmulas, confesso. Meu corpo é arrastado por passos fracos, que atingem o chão com desespero desigual. Não sei se quero ir, mas a vida vai me empurrando, é inútil lançar os remos contra a maré oscilante. Sentirei saudades das nossas trocas de olhares, daqueles segundinhos miseráveis que me levavam de volta a uma infância inocente, digna de um ser normal. Odeio confessar, mas tenho medo, quando deito minha cabeça no travesseiro fico perguntando o que será de nos dois, ou mesmo, o que foi de nós dois? Fomos somente uma troca de olhares, um dúzia de sorrisos? Fomos vitimas de um destino adorável que estancou em nossos peitos a vontade incontrolável de amar e ser amado? Sou uma caixinha de duvidas, lançada pelos quatro cantos do quarto como um brinquedinho descartável. Pois é hora de partir. A noite se anuncia, os pássaros saem à espreita de um refugio seguro. Vou saindo, mergulhando no breu da noite, nadando de braçadas em direção à saudade de nos dois, que já começa a consumir meu corpo nesse exato instante.


Bernardo Biagioni

segunda-feira, junho 04, 2007

Bailarina Desgraçada

Fixou seus olhos brilhosos nos meus e arrastou os pés, num passo de tango até então desconhecido, que acabou por traçar uma ferida no assoalho. Fui de encontro àquele brilho sobrenatural e fui contido pela careta que ela me fez, reprimindo meu avanço. Bateu os pés no chão, sapateava e rodava pelo quarto, fazendo escoar pela casa um barulho seco, vibrante, tão vibrante que se podia notar o ar tremer. Não abaixava os olhos nenhum segundo, havia uma sensualidade impar por trás daquelas pupilas dilatadas, esticadas para alcançar alem do breu na noite. Sentia-a transpirar por trás daquele vestido negro, era feito um suspiro do corpo requintado por uma chama vil, de amor carnal sedento. Não mostrava seus belos dentes, pelo contrário, mesmo com a boca fechada sabia bem que estavam cerrados, como se compusessem parte da concentração destinada aos movimentos oblíquos. Veio devagar em minha direção, percebi com o canto dos olhos que estava sobre os dedos do pé, e se não fosse pela razão, haveria dito que estava flutuando. Chegou bem perto, tão perto que senti sua face baforar uma sílaba incompreensível para meus olhos, e achei que iria me beijar. Riu quando notou que eu havia fechado os olhos, empurrando meus desejos alheios para o escanteio da vida. Puxei-a pelos braços, agarrei-a no meu peito e tentei beijar-lhe o pescoço, mas era inútil. Esquivava feito uma boneca de pano, sem ossos ou limites, deixava o busto cair de costas sobre o chão. Empurrou-me na cama e me pisou no peito, pela penumbra da saia percebi que trajava uma dessas ligas vermelhas, que atiçam a sobriedade do homem. Um calafrio de prazer desceu meu corpo e voltei a agarrá-la, dessa vez ela permitiu que eu a beijasse nos lábios, uma ou duas vezes. Mas diante meu despreparo, esquivou pela tangente e rodopiou o tempo e a certeza que me pendia. Era brincadeira de gato e rato, e eu, no posto do gatuno, corria com a boca aberta, os dentes afiados para atracá-la assim que distraísse. E ela gargalhava da minha inocência, da minha infância reprimida, dos tempos que a assistia bailar pelo buraco da fechadura. E feito um anticlímax desumano, tanto para essa prosa, quanto para minha vida, ela disse que já era hora.


Puxou

_____A

______Porta

__________E

___________Saiu

_______________Dançando.


Bailarina desgraçada.

Bernardo Biagioni


domingo, junho 03, 2007

Obrigado

Foi quando abri os olhos que percebi que abraçava fortemente o violão, a ponto de machucar-lhe o braço. Ele respondeu com um grunhido agudo e melancólico, feito um penitente implorando por misericórdia. Era como se eu quisesse fundi-lo ao meu corpo, estanca-lo em meios aos órgãos frios que delimitam esse meu sistema febril. Larguei-o, e tive medo quando olhei para a mesa e vi que pendia um lápis, tamanho afeto que lhe depositava. A janela chorava gotas de uma chuva densa e fria, que veio se anunciando durante toda a semana, sorrateira. Agradeci que estava cercado de paredes, e uma cama havia sido pintada sob meu dorso, sem que eu percebesse. Mas ao mesmo tempo lancei meus olhos ao chão, fiz menção de silêncio por alguns minutos, lembrando que outros dormiam sobre paralelepípedos sujos dessa velha cidade, e que as mesmas águas que choravam sobre minha janela, escorriam por faces esquecidas em becos escuros. Senti frio, mesmo tendo traçado em minha volta, com tamanha facilidade, um cobertor quentinho. Consiste no meu transtorno obsessivo compulsivo pessoal, de toda vez que se sentir plenamente satisfeito com algo, correr o pensamento para os necessitados. Dobrei-me sobre os joelhos, e num ato franco estendi o antebraço aos céus, senti que por ali poderia descer um daqueles raios que salpicavam lá fora na tempestade. Roguei um verso qualquer, de católico desesperado e ausente do dever semanal de comparecer à casa do senhor Deus. Ergui-me com dificuldade e puxei um papel e um lápis com delicadeza. Não medi as palavras, confesso, e não enderecei meus verbos também. Apenas destrinchei a mensagem vazia de que as pessoas devem amar mais, deixar que os pulsos do peito irrompam pela camiseta novinha da ultima liquidação. Vamos agradecer por esse manto suave que foi estendido sobre os nossos corpos, enquanto em outros mundos há chuva, há frio.

Obrigado.

Bernardo Biagioni


Valsinha

Abrumou a lapiseira aos lábios e a sugou, como se libertasse o devaneio intimo de tragar o grafite. Conteu-se, embora tivesse de fato vontade de alimentar-se daquele material seco, composto de dezenas de carbonos enfileirados. Permitiu que o solo do piano triste invadisse seu corpo e descesse suave pela sua medula espinhal, levemente envergada. Deitou-se, não que quisesse descansar, mas queria deixar penetrar cada sílaba daquela sensação inebriante, de quem se perde de amor por alguém. Sorveu num gole a pinga perdida na gaveta da cozinha, como se quisesse molhar os versos, acalentar a alma já embriagada. Sorriu quando me viu o olhando do outro lado do espelho, deixou as bochechas corarem, desponto de timidez de quem se vê encarado nos olhos. E alegrou-se, não por estar embriagado, ou por ser sexta-feira, mas simplesmente pelo fato de alegrar-se com tamanha facilidade, sem deixar vestígios ou traços de incertezas. Deixou a alma ser ninada enquanto destilava passos pelo quarto, dedicados, sobretudo, ao som do violino que arranhava o tempo cinzento que invadia pela janela entreaberta. Por esses segundos foi livre, fui livre, gozei o desejo desnudo da liberdade plena, e a deixei que compusesse esses meus versos extasiados.

Permitam-me essa dança?!

Bernardo Biagioni

terça-feira, maio 29, 2007

Destino 6107

Sorveu num ultimo gole o resto de vinho que pendia na taça. Pensou em escutar algo, mas sentia preguiça demais para mexer nos discos na estante. Ligou a vitrola e sentiu-se satisfeito com o jazz triste que ecoou no ar. Deitou na cama assim que os primeiros acordes do piano foram chorados. Fechara os olhos, mas era inútil dormir. Levantou, pegou o casaco pendurado na cadeira e jogou-o sobre o dorso, mergulhou a mão direita no bolso e confirmou que estava com a chave de casa.

Pulou os três sets de escada que o separava da rua, e saiu andando, sem pressa, porem sem lerdeza. Parou no ponto de ônibus ao ver Ela, não sabia seu nome, embora conhecesse seu corpo como ninguém. Poderia distingui-lá em meio a multidões de pessoas, simplesmente olhando para seus pés. É que passara tempo demais decorando o brilho de seus olhos, e resolveu iniciar uma nova fase, percorrendo todo seu corpo como se buscasse filtrá -la para seu pensamento absolto. As costas Dela estavam nuas, sentiu vontade de chegar perto, roçar sua barba mal feita nela, arranhando aquela pele limpa e crua. Usurpava do devaneio intimo de escrever-lhe às costas, e em todo corpo, um poema, dois, ou talvez um romance breve, feito um pavio que queima lentamente. Permaneceu parado, suas pernas costumavam trair seus pensamentos em situações como aquela, gozava do prazer grotesco de ficar admirando-a sem mover seus verbos apaixonados. Nos últimos dias a imagem dela insistia em delimitar suas reflexões, não conseguia cerrar os olhos sem vê-la transitando por sua rua com uma serenidade ímpar. Dividiam o mesmo andar do prédio de três andares da esquina, vez ou outra escutava o Chico Buarque cantar rente a parede de seu quarto, canção vinda dos aposentos dela. Sentia vontade de dizer que também gostava de Chico, e que curtia outros, Caetano, Gil, Milton e toda essa gente da musica brasileira. Mas quando a via nos corredores do prédio, ou nas escadas, contentava-se em abaixar os olhos, e fazer sinal de comprimento com a cabeça.

O ônibus 6107 deu as caras. Ela subiu correndo pela porta da frente. Ele hesitou, rebelou com as sinapses dos neurônios que não se manifestavam, venceu, saiu correndo. Socou a porta e o motorista deixou que entrasse. Entrou com a cabeça erguida, como se fosse pela primeira vez Homem, como se pela primeira vez tivesse certeza de alguma coisa. Sentou do lado dela, disse “oi”, ela respondeu com um sorriso. O ônibus arrancou e eles se foram, não se sabe pra onde, ou quando voltam, mas se foram, na mesma embarcação, no mesmo banco, na mesma vida, e juntos, tão juntos que poderia-se acreditar que faziam parte de um só corpo.

Bernardo Biagioni


segunda-feira, maio 21, 2007

A Revolução não será Televisionada

A revolução não será televisionada. As emissoras de televisão hão de manter a mesma programação, se privando do direito de reportar o estopim. Vai ter atores e atrizes nas ruas, passarela ininterrupta do palco do teatro da esquina. Os seresteiros violarão o silêncio, com viola no dorso e palheta na mão. Hão de vir poetas de todas as regiões, motivados pela alforria que se explode na avenida. E vai haver carnaval, no meio desse vendaval hão de comparecer os verdadeiros pandeiros, que cismam em se esconder pelos becos escuros da capital. Virão guerrilheiros, soldados e militares desprovidos de alienação governamental, serão responsáveis pelas barricadas, livros e melodias compondo um muro estrutural. Hão de vir cabeças-chaves de governos de oposição, os quais desejam o massacre do neoliberalismo febril, e a imposição da justiça social. Há de chover confetes, os paralelepípedos hão de urgir de dor por sustentar a multidão que lhe caberá. Serpentinas cobrirão a luz do dia, traçando as cores do arco-íris no céu acinzentado. As paredes serão cobertas por cartazes e adesivos, ficarão por cima dos anúncios das Casas Bahia, ou da Cartomante da Alegria. Nas varandas dos prédios penderão bandeiras verde-amarelas, estiadas no mármore seco, escovadas até o chão. Os carros irão entoar uma sinfonia, feito copa do mundo, todos vangloriando a vitória da seleção. No Congresso não vai haver nada não, exceto euforia, cantoria em homenagem ao soerguimento da Brava Mãe Gentil. Os jornais impressos titularão o carnaval fora de época, mas bastante atrasado nessa era. E vai “haver futebol, choro e muito rock and róll”. A revolução não será assistida, mas será consumada, assim que decidamos atracar a panela aposentada na gaveta da cozinha, e juntarmos no Planalto Central para entoar uma bela melodia.

Vamos Brasil, brincar de fazer canção!


Bernardo Biagioni


domingo, maio 20, 2007

Samba Mulata!

Por brincadeira do destino foi com ele que comentei da saia rodada da menina que passava na rua. Ele sorriu, e num suspiro incessante deixou escorregar a alegria de viver. E abriu a boca para dizer, percebi que fazia mais, era feito entoar uma bela canção, uma voz rouca, rasgada, digna de um verdadeiro trovador. Não percebeu o meu espanto, nem poderia fazê-lo, pois ainda admirava a mulata que rodava o vestidinho como se dançasse um bolero inglês. Era mendigo, feio esse nome, mas assim meu leitor vai entender de quem estou falando. Locutor de rádio não falaria tão bonito, tão suave, e nem seresteiro apaixonado flecharia seu amor com uma melodia tão profunda. O que a mulata tinha para se mostrar, ele tinha escondido, feito um samba improvisado num porão escuro, enquanto pelas ruas escandalizam um carnaval contrabandeado. Agora estou falando de samba, o verdadeiro bamba de quem coloca os dedinhos para cima e deixa os pezinhos bailarem. Estou falando do verdadeiro trio elétrico, aquele que sacode até quem já descansa em jaz. E a mulata ia sem mais rodeios, exalando pelos saltos nos pés a melodia adormecida nos nossos ouvidos. Parecia invocar certa força divina, a maneira como sacudia a bacia fazia o tempo tremer, como se fosse preciso estancar a certeza do relógio de ponteiros. Do lado de cá eu e o mendigo com a voz de locutor, com as mãos nos queixos, segurando os segundos da vida que não poderiam passar. Sorria pra ele, e ele devolvia em dobro, podia ver seus dentes através da barba sedenta que cultivava a meses. Desabou no chão toda minha lucidez quando ainda exclamou: êita vida boa rapaiz! Pois me digam onde eu estava com a cabeça, nos dias em que reclamei nos travesseiros que a vida não andava nada de mais. Peço desculpas, hão de me perdoar - pois por esses momentos só quero tragar a voz do meu novo amigo, e ver aquela morena sacolejar.

Anda mulata, dança!


Bernardo Biagioni


terça-feira, maio 15, 2007

Deixa ela viver mamãe!

Deixe que sua filha saia mamãe. Ela passa no banco traseiro do carro com os olhinhos pregados no vidro, assistindo um mundo acontecendo. Deixe que se junte à roda de samba que cantarolam na esquina da R. Pernambuco, coladinho no boteco do Nei. Deixe que sua filha rompa a fina película de vidro que a separa do futebol que as crianças jogam descalças nas ruas. Deixe-a sorrir o sorriso puro do mulato recém alforriado do emprego estressante. Ela olha as pessoas arrastando os pés sobre o assoalho seco na avenida, fazendo entoar um barulho ressonante que traça uma melodia. Ela quer sentir nos capilares periféricos a essência de viver, sentar em um ponto de ônibus e reclamar com a morena cheirosa que o itinerário da linha 2104 deveria mudar. Quer descer numa esquina antes do portão de casa, que é para passar de porta em porta, perguntando o nome da vizinhança. Ela passa com os olhinhos no vidro mamãe, e preenche sua parte inferior com gotículas de água de sua respiração sedenta. Sente frio, mesmo com o aquecedor ligado, e o termômetro do painel sinalizando os fervorosos 35º - mas é escassez de calor humano mamãe, ela quer aquele abraço apertado que vê sinalizado no semáforo. Quer sentir com o solado nu as pedras colocadas à mão no chão do passeio da loja de brinquedos que ela entra carregada no colo. Sentir-se iluminada pelos postes das avenidas que cismam em falhar quando a noite cai. Sente vontade de deixar correr pelas têmporas o gotejar morno da garoa que desce de mansinho. E sente vontade enorme de vir correndo abraçar o menino que a encara com um lápis pendendo na mão direita, perdido na confusão das pessoas, situado bem no meio da vastidão do mundo.

Deixa-a respirar mamãe. Deixe ela viver!

Bernardo Biagioni


segunda-feira, maio 14, 2007

Fotos 3x4 (Parte II)

Voltando à historia da colecionadora louca de fotografias 3x4. Uma semana se passou, e de forma inversamente proporcional, crescia a minha expectativa por vê-la novamente. Ah, ela se chamava Aline, mas no primeiro dia de aula enquanto comia um churrasquinho no quiosque em frente à escola de francês, disse que eu a chamasse de Nine, e com a boca aberta, deixava à mostra os pedacinhos de carne entre seus dentes. Eis que chegou a tão ansiada quinta-feira, dia de ouvir os Bon Jours e Petit Gateaus de sempre. Cheguei mais cedo que o normal, parei o carro em estacionamento proibido, multa que veio impedir que eu desse um presente de aniversário para minha mãe. Entrei na sala, estava perfumado, uma colônia inglesa que mais fedia do que cheirava, e que me causava irritação no pescoço e nos pulsos. Ainda faltavam trinta minutos para começar a aula, tempo que dediquei a tremer as pernas e a coçar as irritações, que acabaram me dando um aspecto bastante avermelhado. Ela entrou, comia um X-Bacon sem salada que vendia no Trailer do Seu Manuel, do outro lado da Av. do Contorno. Olhou para a professora e resmungou um Bon Jour, acompanhado de um milho podre que saltou de sua boca. Sentou na cadeira quebrada debaixo da janela, como sempre fazia, e sequer teve curiosidade de olhar para onde eu estava, que à essa altura já estava ostentando pedaços de carne-viva na altura do pescoço. Não me perguntem o que foi falado naquela aula, nem sequer lembro das palavras que tive de repetir, que saíam com uma dificuldade anormal. Lembro de ter ouvido somente quando a professora suspirou enquanto apagava o quadro: Ahh, L’amour est tre beau, a frase ecoou nos meus pensamentos e desceu feito um calafrio pelo corpo. Bateu o sinal e Nine foi saindo, e parecia decidida a não lançar nenhum olhar para mim, mesmo que fosse por distração ou semelhante. Pois resgatei o vestígio de coragem que pendia na minha timidez e corri até ela, e a puxei pelo braço esquerdo. Ela virou e pude ver que estava mais feia que o normal, o que me atraiu de uma forma estranha. “Porra Eduardo, já falei que está tudo terminado entre nós”. Terminado? Mas eu ainda estava querendo começar. Ela deu três passou a frente e parou, mas continuou de costas. Corri ate ela e a beijei, talvez o melhor ato de impulso que tenha tomado em toda minha vida, pois naquele momento senti no sangue o porque de ter passado o perfume vagabundo e de ter parado em estacionamento proibido. Ela me empurrou depois do que me pareceu uma eternidade de beijos, e disse, enquanto passava a manga da camisa nos lábios: só tem um jeito de você entrar para minha vida de vez. Falando isso ela deu de costas, cobriu o rosto que corava e disse baixinho, que fiz força para escutar: quero uma foto 3x4 sua! Aquilo me deu um medo, uma sensação esquisita. Uma foto 3x4? Porque não uma com meu cachorro, ou com meu avô fofinho ou uma ordenando os gados da fazenda? Uma foto 3x4 era demais! Foi naquele instante que ela me pediu pela primeira vez uma fotografia 3x4 minha. Só mais tarde que eu fui descobrir que seria parte de uma coleção numerosa, que forraria toda a parede seu de quarto. Foi quando as nossas brigas começaram sabe? Mas, ixi, isso já é ouuutra historia.


Bernardo Biagioni

Poeminha

Não sei meu nome
Do meu sobrenome eu esqueci,
Brinquei a tarde inteira
E pela noite que fui sorrir.

Não sou poeta, ou trovador.
Muito menos me fiz "dotor"
Sou menino, sou criança
Pedacinho da sua lembrança.

Escrevi esse poeminha
Para brincar de fazer rima
Sem pontinho o termino
Que é pra não estancar esse meu mimo

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Parodiando Vinicius:

Que me desculpem as burras, mas inteligência é fundamental.

Bernardo Biagioni

quinta-feira, maio 10, 2007

Fotos 3x4

Só mais tarde que eu fui descobrir que ela colecionava fotos 3x4 das pessoas que conhecia pela vida. E foi justamente esse estranho hábito que marcou o inicio das nossas brigas. Não que eu ficasse nervoso quando olhava para a parede do quarto dela e via uma centena de rostinhos, mas me dava agonia. Aquilo era uma espécie de obsessão, sei lá, mas tudo bem. Conheci-a nas aulas de francês que fazia semanalmente, talvez por ser um pouco mais velha, tinha uma dificuldade incrível de pronunciar as palavras, e toda vez que errava, olhava para mim e sorria. Teve uma vez porem, que ao invés de me lançar aquele sorrisinho idiota, ela virou pra mim e disse num sussurro: estou usando meias novas. É claro que eu indaguei no mesmo instante: heinnn? Ela sorriu daquela mesma maneira, e não sei por que, o sangue subiu-me às têmporas. E quando acabava as aulas ela me chamava para ir a sua casa, que ficava a dois quarteirões dali. Depois de oito meses improvisando desculpas espetaculares do tipo: “nossa, vai um cara hoje lá em casa arrumar a geladeira, não vai dar”, acabei tendo que aceitar o convite. Ela entrou na frente e fechou correndo a porta do seu quarto: “aii está muito bagunçado”, mas eu tenho certeza que era por causa das fotografias 3x4. Era uma casa modesta, paredes brancas e descascando, uma televisão dessas velhas que nem com aquelas antenas de dois metros e meio conseguiria sintonizar a rede globo. Me ofereceu um café, café? Caralho, quem oferece café hoje em dia? Mas tudo bem, não sou do tipo que reprime tradições do passado que, aliás, me parecem bastante peculiares. Aceitei, afinal, também não gosto de fazer do tipo mal educado. E ela veio com a xícara na mão, mas tropeçou na bonequinha Barbie que estava no chão e derramou aquele liquido preto todo na minha camisa. E veio correndo, achei que iria limpar o estrago mas me beijou a boca. Mas que beijo espetacular meeeu Deus. Alguma coisa nela tinha que ser bacana afinal! Beijei-a por minutos e nem liguei que tivesse uma barbie em casa, no meio da sala de estar. E em silêncio ela me levou ate a porta, e num suspiro disse: agora vá. E fui, não falei nada, também nem tinha o que falar. Também nem liguei para as pessoas na rua que olhavam para minha camisa manchada, eu estava sorrindo feito um bobo, sorrindo cara? É, me apaixonei por uma doida que colecionava fotos 3x4 e que tinha uma Barbie no chão da sala, com a qual devia brincar freneticamente. Mas quanto ás fotos eu só fui descobrir depois, foi meio que o início de nossas brigas sabe? Mas isso já é outra historia.


Bernardo Biagioni

domingo, maio 06, 2007

Sambinha

Vim para serestar uma melodia, uma triste poesia do mendigo que bateu à porta. Vim porque precisava vir, a inspiração clamou-me os versos, mesmo que incertos e perdidos em uma telinha virtual. E estou para cantar, porque lá fora explode um silêncio de mentiras e covardias. Venho sambando, porque assim descanso meus pés das injurias pequeninas. Estive sorrindo, e ora sinto egoísta por cultivar a felicidade em dias de guerra. Cantarolando uma cantiga velha, dessas que só batem nas janelas dos amantes senis. Venho em paz, confusão já tem demais. Venho iludido, de que dias melhores engatinham pelo chão sujo da avenida. Trago em meus braços o carnaval, triste vendaval de quem prefere o bolero inglês. O samba é de raiz, de brasileiro inconformado com a discrepância social. Não toco techno trance ou electro-house, boto para arranhar um vinil antigo e vejo futebol. Sorria! Você não está na Bahia, mas esta no país da maravilha tropical. E vou terminando, não por cansaço, mas por mera distração. Estive perdido pelos becos escuros, mas vim iluminado pelo vil calor desse horror. Sinto-me bem, mesmo não caindo em desgraças por alguém. Por isso, peço que arranque este corpo sedento da cadeira e se junte a esse pobre falastrão! Espero-te com caixinha de fósforo, pandeiro, cavaquinho e violão.

Venha, e entre sem bater.

Bernardo Biagioni

Vin Rouge

Melhor que o sabor do vinho,
só o fato de poder ver a garrafa se esvaziando.

[Pela] boa noite,
Bernardo Biagioni

sábado, maio 05, 2007

Louco

Dizem por aí que Bernardo Biagioni está enlouquecendo.

E tem jeito de ficar normal?

Visitem esse cara: www.iliveinabunker.com
Manda demais.

Eu volto,
“Julinho da Adelaide”

quinta-feira, maio 03, 2007

Drink

Consuma meu corpo. Consuma bem, como quem vira num gole o resto de coca-cola numa latinha quase vazia. Sorva meus versos imaturos, de criança mal-criada revoltada com a professora. Trague meus pensamentos, e deixe a fumaça intoxicar o fumante passivo que me olha curioso. Beba-me a juventude, ou vestígio dela, que ora cisma em dar as caras por este corpo sedento. Usurpe minha alma, decepe-a, esquarteje as partes que lhe fazem gosto. Estou me entregando por inteiro, feito Cristo fez para a salvação dos homens. Deixo que entrem sem bater a porta, sem pedir senha ou pedido de identificação. Quero mesmo que entre, e me tome por inteiro. É proibido proibir, prego tanto a libertação de vossos corpos, jamais daria um passo atrás agora. Estou aqui pra ser pisado, questionado, não para ser elogiado. Quero que me conteste, quem sou eu para ficar falando de liberdade? Venha, venham todos, estou estendido na cruz esperando a primeira pedra a ser atirada.


[Reaja] Bernardo Biagioni

A Lamentável Trajetória de Patrick

Era pouco mais que 2:00 da madrugada quando eu cheguei no ponto de ônibus da Savassi, bairro tradicional da cidade de Belo Horizonte. Estava com um fiel amigo de fotografias de baixa qualidade (celular), Bruno Pimenta, e lamentávamos baixinho os probleminhas da vida.


Eis que chega cantarolando um samba antigo um velho conhecido, Patrick, 12, morador e adorador da favela "Morro do Papagaio". Conhecemos o Patrick em Junho do ano passado, ele estava em um sinal de trânsito perto de um grande shopping da região do Belvedere, bairro nobre da cidade. Na ocasião, convidamo-lo junto com seu irmão Ricardo, pouco mais velho, para andar nos nossos skates. Os garotos fizeram a maior festa, ficavam divididos entre os “carrinhos” e a bicicleta de um outro amigo nosso. O sorriso que cultivavam abertamente na face não deixava negar o quanto se divertiam, alimentava também a nossa alma um tanto quanto enferrujada.

Fiquei um bom tempo sem vê-los, ate que encontrei o Patrick fazendo malabarismo em um sinal de trânsito da Savassi. Ele jogava desordenadamente duas bolinhas para o alto, depois fazia o clássico gesto de agradecimento e vinha correndo em direção aos carros. Abri o vidro e fui logo o chamando pelo nome. Ele estranhou, e antes que eu pudesse lembrá-lo do memorável dia dos skates, o sinal abriu e meu tio arrancou o carro.

Alguns dias depois eu estava sentado em um bar e o vi passar correndo com alguns amigos. Só se ouvia da boca do Patrick "corre de menor, corre!" Atrás vinha o dono de uma padaria, bufando e parando aos poucos. Ele virou para a nossa mesa e desabafou enquanto tomava ar: "roubaram um pacote de chips na minha padaria, meninos filhos duma p***".

E fiquei um bom tempo sem vê-lo, sequer lembrava do rosto dele. Até que ontem eu o encontrei. Ele vinha na minha direção cantando o sambinha, e antes que estendesse as mãos para me pedir uns trocados eu lhe chamei pelo nome. Ele me olhou assustado, os olhos pretinhos e arregalados como na vez do sinal de trânsito. Para nossa surpresa, minha e do Bruno, ele cheirava uma garrafinha pet de 500ml, que abrigava um resto de cola. Já sentados no passeio, tentávamos lembrar ele do dia em que ele saiu com a gente. Não demorou muito.

Patrick largou a garrafa e abriu um sorriso que, com certeza, jamais vou esquecer. E dividido entre eu e Bruno, começou a recitar os fatos: "poxa, era um skate grandão assim oh" e com um olhar distante esticava as mãos para desenhar a sua saudade.

Ficamos um tempo com os clássicos sermões de quem se preocupa com um ente querido. E falávamos que ele tinha que largar a cola e estudar. Bruno perguntou o que ele preferia: uma garrafa cheia de cola ou um brinquedo. De novo ele mirou os olhos negros para um vácuo e começou a falar bem alto "um brinquedo, claro! Igual daqueles que tem no Mc Donalds.”

O Bruno tirou o celular do bolso e tirou algumas fotos do Patrick, ria baixinho enquanto falava: "vou provar para todo mundo que eu tenho um filho sim!" Patrick e seu amigo que havia chegado pouco depois ficaram enlouquecidos de poderem se ver em uma telinha tão pequena.

E sem mais nem menos ele levantou, olhou para os amigos e disse: vamos! Olhou para a gente e disse que ia dormir por ali mesmo que estava com muito sono para esperar o ônibus. Segurei a mão dele e busquei os seus olhos, mas estavam depositados no chão. Senti um aperto no peito, uma tristeza fria percorrendo cada espaço do meu corpo. Olhei para o Bruno e vi que ele sentia o mesmo. Pegamos o mesmo ônibus, mas não trocamos nem uma palavra sequer durante todo o caminho.

É essa a historia do Patrick, pelo menos até aqui. O final, os olhos dele vão escrever. Talvez com a ajuda de um pai alcoolizado ou de uma mãe escravizada pela sociedade. Ou talvez ainda por pessoas sensibilizadas com situações semelhantes a essa, como eu e o Bruno, que havemos de lutar de aqui em diante por pelo menos uma cidade melhor.

Lutemos.