domingo, junho 03, 2007

Obrigado

Foi quando abri os olhos que percebi que abraçava fortemente o violão, a ponto de machucar-lhe o braço. Ele respondeu com um grunhido agudo e melancólico, feito um penitente implorando por misericórdia. Era como se eu quisesse fundi-lo ao meu corpo, estanca-lo em meios aos órgãos frios que delimitam esse meu sistema febril. Larguei-o, e tive medo quando olhei para a mesa e vi que pendia um lápis, tamanho afeto que lhe depositava. A janela chorava gotas de uma chuva densa e fria, que veio se anunciando durante toda a semana, sorrateira. Agradeci que estava cercado de paredes, e uma cama havia sido pintada sob meu dorso, sem que eu percebesse. Mas ao mesmo tempo lancei meus olhos ao chão, fiz menção de silêncio por alguns minutos, lembrando que outros dormiam sobre paralelepípedos sujos dessa velha cidade, e que as mesmas águas que choravam sobre minha janela, escorriam por faces esquecidas em becos escuros. Senti frio, mesmo tendo traçado em minha volta, com tamanha facilidade, um cobertor quentinho. Consiste no meu transtorno obsessivo compulsivo pessoal, de toda vez que se sentir plenamente satisfeito com algo, correr o pensamento para os necessitados. Dobrei-me sobre os joelhos, e num ato franco estendi o antebraço aos céus, senti que por ali poderia descer um daqueles raios que salpicavam lá fora na tempestade. Roguei um verso qualquer, de católico desesperado e ausente do dever semanal de comparecer à casa do senhor Deus. Ergui-me com dificuldade e puxei um papel e um lápis com delicadeza. Não medi as palavras, confesso, e não enderecei meus verbos também. Apenas destrinchei a mensagem vazia de que as pessoas devem amar mais, deixar que os pulsos do peito irrompam pela camiseta novinha da ultima liquidação. Vamos agradecer por esse manto suave que foi estendido sobre os nossos corpos, enquanto em outros mundos há chuva, há frio.

Obrigado.

Bernardo Biagioni


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