sábado, dezembro 04, 2010

eu não consigo dormir quando penso no tempo em que estamos vivendo

Houve um tempo em que era fácil dizer não. Um tempo em que eu tinha cinco, sete, treze anos de idade e ficava no banco de trás do carro observando pouco a paisagem, perguntando quando tempo faltava para chegar, os hormônios de ansiedade palpitando por cada pedaço do corpo, um prazer imensurável pelo destino. Dias e noites onde tudo tinham um fim específico, claro, mesmo que fosse só construir uma casa de madeira na árvore segura e espaçosa, com vista para as margens do rio.

Pouco se percebia a paisagem como se percebe hoje. O caminho. Fica mais fácil dizer sim para o Mundo quando se compreende a beleza, a importância e a existência das montanhas, as curvas e curvas das estradas, as duas faixas amarelas no centro meticulosamente desenhadas, pintadas e preocupadas em te levar adiante, além do que se vê por cima do horizonte que mergulha nos filetes de sol que sobrevivem depois das nuvens que estão no céu.

Nenhuma palavra pode descrever o que é estar vivo neste período particular da história, ano de dois mil e dez, com todo um sentimento universal se espalhando em correntes antes não existentes. Ficou mais fácil se unir para criar, para se juntar, e para fazer acontecer. Ficou mais fácil construir um tempo especial a sua maneira, explosivo e efêmero, eterno e mutável, e - mais do que tudo – sincero. Ficou mais fácil ser sincero com o que somos.

Hoje sou um sismógrafo. Eu sinto, eu escrevo.

E não importa a magnitude dos fatos, a duração dos tatos, a procedência e o culminar, o dobrar da esquina numa sexta-feira de frio. Tudo que balança o meu universo vira palavras e virgulas, combinações cuidadosas de frases montadas como um quebra-cabeça de peças infinitas. Posso marcar o topo. Posso sentir o quase nada. E vou sempre continuar Sendo.

É como uma pena. Cedo ou tarde ela tem que se libertar para poder voar inconsequente no meio do vento, carregada pela brisa, pela maresia das praias que encontrar no caminho, nos sopros e lampejos que impulsionarão seus voos sorrateiros pelas raízes da vida. Hoje é cada vez mais natural, inevitável e necessário embarcar na viagem, aceitar o caminho, Ser e deixar-se viver pelas escolhas libertinas orientadas pelos mistérios do planeta.

Dois mil e dez, pois. Quero só deixar registrado que eu vim, vivi, e estou vivendo. Todos os outros momentos da história já existiram, já tiveram um início, e já aportaram em um final. Mas esta noite não. A manhã de amanhã também não. Essa década inteira apenas começou a ser escrita.

Fico pensando em tudo isso olhando a cidade inteira brilhando lá embaixo, milhões de centelhas de almas acendendo e apagando em bares com os letreiros acesos, milhões de almas iluminadas em faíscas em cada tato que tateiam, em cada conversa desajeitada que é desconversada, olhos e beijos explodindo em saudade de tudo que podemos Viver amanhã. Não é porque estamos em 2010. Ou porque todo esse espírito parece com o de 1960. É simplesmente porque agora é... agora. E o depois é o infinito. Só o infinito e tudo mais.

terça-feira, novembro 09, 2010

existe ar quando voce voltar

Meu silencio em ti tem nome, nobre desabandono do meu coração solitário que desanda a andar em todo tato que é feito de beijos, de lábios e lábios sibilando os gritos que gritam na alma. É assim como se fosse uma espécie de encontro do desencontro perfeito, eu e você andando sem jeito pelas curvas do mapa sem nunca se esbarrar senão nas horas trocadas, erradas, sempre tardes demais, sempre cedas de menos.

Somos intensos o bastante a ponte de trocarmos faíscas todas as vezes que nos esbarramos no Acaso.

Nosso amor é uma necessidade, um pretexto rápido para encontrarmos as nossas felicidades plenas adormecidas em algum canto do peito. Em ti eu descubro em mim toda a saudade que sofre o homem, toda a verdade que não se encaixa em palavras, em versos, mesmo estes que andam por aí desarmadamente sinceros. Meu silêncio em ti não tem nome, tem dia de chegada, da primeira despedida, e carrega o cheiro de perfume que ficou no nosso desengano. Nunca vai ter fim. E sempre estará aqui dentro cantando.

quarta-feira, novembro 03, 2010

baby & devendra banhart

Eu não sei o que me incomoda até começar a olhar o seu retrato, o meu sorriso retalhado de saudade no reflexo, minhas lembranças dançando em silêncio pelas músicas que dançamos encostados no carro, debaixo da lua que sobe por trás da montanha. Dá até assim um arrepio sem jeito no peito, ouvindo devendra banhart imaginando você lá dentro do banheiro no chuveiro, assobiando um trecho errado de baby, de santa maria da feira, ou de qualquer uma dessas canções que mechem tanto comigo. Vão dizer que tudo isso é amor, que tudo isso só poderia terminar em um clamando pelo outro de vontade, que tudo isso é bobagem ou sacanagem do destino. Mas eu digo que é só música, meu bem. Eu digo que é só a nossa música tocando de novo.

sexta-feira, outubro 22, 2010

Não há mal nenhum em navegar

Não há mal nenhum mal em vagar. Mesmo que nem tudo seja mar, entre uma onda ou outra é só deixar os braços correndo contra a corrente, ficar nadando como quem nada sem destino, como quem sabe da importância do caminho, sem força, sem fraqueza, apenas deixando acontecer.

Não há mal nenhum em navegar. Mesmo que nem todo barco tenha a sua proa, que nem todo amor saiba da sua dor, entre um horizonte e outro mora sempre uma ilha, ondulando no calor como uma miragem, como um pensamento perdido na saudade de tudo que poderia ter acontecido.

Não há mal nenhum em viajar. Mesmo que seja meus olhos nos seus olhos, meus dedos nos seus dedos, minhas respostas nas suas perguntas desencontradas, desencantadas, irreparavelmente desesperadas para serem silenciadas em um passo, em um beijo, em um lampejo de vontade.

Não há mal nenhum em te amar. Mesmo que seja só por hoje.
E depois nunca mais.

Não há mal nenhum em te deixar.

Há?

quinta-feira, outubro 14, 2010

Sobre abrir as portas

Ele, simples ele, aventureiro das desventuras humanas, feliz poeta das desilusões premeditadas, dos desencontros planejados, das palavras requintadas, ritmadas, que ficam indo e voltando por suas pupilas dilatadas, escancaradamente encantadas como portas feitas de mosaicos coloridos, repetidos nas laterais, esteve na sua casa hoje, de branco, vestido como um profeta, um rebelde de cinema que fugiu de cena, foi para dizer coisas bonitas, perdidas, cheias de mentiras gostosas, bem debaixo dos teus ouvidos, na altura do pescoço, por cima dos seus ombros arrepiados de uma vontade deliciosamente perigosa de abrir de vez as suas portas da alma, desta alma que grita, que chora, que pede de mansinho uma chance de ser livre hoje, amanhã, e de dois dias depois.

Você deixou ele entrar?
Vampire Weekend - M79

segunda-feira, setembro 13, 2010

Sobre cigarros e sair fora amanhã de manhã

Hoje eu olhei no fundo dos seus olhos de manhã, um pouco depois de você acordar, e pude perceber pela primeira vez que talvez falte apenas umas duas ou três semanas para você conseguir finalmente se livrar desta sua alma apegada, chateada, que vive lhe incomodando a serenidade dos seus sonhos desencontrados. Não demora muito para você arrastar de vez a porta de ferro para perto da parede, escancarar de vez as palavras que estão aí escondidas, gritando, se remoendo de frio no meio do calor da sua aura que grita, que chora, que canta qualquer outra poesia sobre fugir por aí de novo. Sinto que logo vamos estar dirigindo sozinhos por perto mais uma vez, inventando caminhos incertos nas estradas que serpenteiam as montanhas, nos perdendo nos mapas que nunca levaremos, e descobrindo tudo que estivemos conversando no meio deste nosso silêncio. Este silêncio confortávelmente absoluto.

sábado, agosto 28, 2010

Ainda é possível viver mais depois

Esta foi uma daquelas noites que sempre terminávamos arrumando as nossas coisas para dormir na sala, no perrengue, ele estirando o cotonete fino no chão de madeira, e eu procurando um canto confortável no sofá improvisado em uma cama, sem lençóis. Mais uma vez vamos fechar os olhos sorrindo, silenciosos e satisfeitos com o nosso dia, enquanto fomos apenas um carro brilhante correndo pelos arranhões cinzas e amarelos do mundo. Já sinto meu peito apertando forte, em batidas aceleradas, curioso com tudo que descobrimos antes, hoje, ontem. E com uma puta saudade de tudo que vamos viver amanhã.

Bernardo Biagioni

quarta-feira, agosto 25, 2010

Bom inverno

Inventamos pra gente uma casa no meio do inverno, feita toda de pedras, perdida entre árvores secas, altas e sem folhas, pinceladas de branco pelos cristais de neve que mergulham no vento com calma. É lá que nos encontramos quando sentimos saudade, quando nos perdemos dentro de nós mesmos no meio das conversas que arriscamos na rua, com os pensamentos ondulando trôpegos pelas lembranças dos nossos primeiros beijos ontem, neste mundo que existe de verdade. Da janela não conseguimos enxergar muito mais do que um lago, que está sempre refletindo os nossos sorrisos, e uma dúzia de montanhas que vem e vão entre a névoa que corre para o leste, sempre como se estivesse dançando, oscilando, se desconcertando pelas linhas do horizonte.

Lá ela está sempre sentada no chão, encostada na cama, e carrega nas mãos uma taça que nunca se esvazia, mesmo quando precisa abrir outra garrafa. Todas as noites antes de dormir, fica se perguntando sobre os sonhos, sobre as verdades, e sobre as vontades que tem sentido de fugir de si mesma para viver ali, longe de casa, alimentada pela liberdade que sente quando estamos juntos, a menos de dois metros da lareira. Gosta de passear seus dedos pelas minhas costas, começando pelo pescoço, enquanto ouvimos For Emma tocando na vitrola.

Mudamos para lá deve ter um mês, ou talvez um pouco menos, e não temos conversado mais do que com os olhares, com os dedos, nos descobrindo no silêncio da neve que bate na janela fechada da sala. Não dá para saber por quanto tempo que vamos viver assim, perdidos na ilusão, negando as nossas distâncias, os nossos desencontros e os percalços que sobrevivem nas nossas verdades desajeitadas, ainda despreparadas para entender que já estamos preparados para escrever que estamos nos amando. Estamos bem, enfim, por ora acertados com as nossas ansiedades que descompassam cada uma das batidas dos nossos peitos. Pela janela que dá para os fundos, ficamos sonhando com a realidade que dorme mais esta noite nos esperando lá do outro lado do mundo.

Bernardo Biagioni
Bon Iver - For Emma, forever ago

quinta-feira, agosto 12, 2010

Chegou a hora de partir, meu amigo

Meu amigo, a estrada é essa. Experimente jogar os cabelos para fora para sentir que estamos mesmo indo, finalmente indo, seguindo em disparada contra o desespero do vento, escrevendo o nosso destino com as linhas das mãos que sobem e descem entre a tormenta que desce fria lá atrás, lá no começo de tudo, no fim da nossa velha vida de viver pensando quando é que estaríamos vivendo assim, no caminho, em busca de nada senão dos nossos desatinos acometidos de loucura, de sobriedade profunda. Não tem mais volta, não tem mais curvas, não tem mais montanhas, colinas e esquinas que possam espreitar as nossas ânsias satisfeitas que dançam despreocupadas nos nossos devaneios perdidos no futuro, nas chegadas, nas despedidas, nas linhas que escrevemos sem precisar pensar muito, sem precisar imaginar nada.

Parece que agora irreperavelmente conseguimos atravessar a linha, as margens da poesia, e poderemos enfim encontrar Stills, Nash, Crosby e Young, os velhos homens das barbas cultivadas, e acertar a conta com a nossa felicidade que andava um tanto desesperada para poder começar a cantar. Vamos só acelerar, pisar fundo para o fundo do mundo, para a luz que nos espera do outro lado do túnel, as árvores, as tardes sem chuva, só para ver a natureza respirando, os cometas colidindo, os viajantes perdidos suspirando estrelas enquanto esticam o dedo para mais uma carona antes de mais uma cidade, de mais um hotel barato para dormir. Chegou a hora de viver, de ser, de olhar para trás e não se arrepender de não ter vivido, de não ter sido, e de não ter partido.

Chegou a hora de partir, meu amigo. Chegou a hora de partir mais uma vez.

Bernardo Biagioni

Ontem ela fugiu para barcelona

Ela quer morar no mar. Não quer mais que uma casa de madeira, dois quartos pequenos e uma sala com quatro janelas grandes, sem cortina, que é para nunca esquecer que pode fugir para o horizonte toda vez que precisar. Do lado de fora vai ter um tapete sempre cheio de areia, uma rede colorida, estirada entre os dois coqueiros que vai plantar assim que chegar, e uma grade amarela, baixa, pequena, que não tenha medo de receber quem quer que possa aparecer da estrada, das viagens sem chegadas, dos caminhos de partidas.

Ela quer acordar com o sol. Não quer teto no seu quarto, sombras no seu tempo, escuridões desesperadas no realento das manhãs que nascem por trás das montanhas esquecidas nos cantos da ilha. Quer ver as estrelas adormecendo, as nuvens passeando e os pássaros se arrastando entre os vendavais e temporais que sempre avisam que estão chegando. Deitada em sua cama ela quer poder pincelar nos dedos as estrelas que se confundem solitárias na imensidão silenciosa da madrugada.

Ela quer saber amar. Ela quer amar como amam as cartas, as lágrimas de saudade, os bilhetes improvisados nos guardanapos que navegam em garrafas vazias nas profundezas distantes do oceano. Não quer ter dias, semanas, planos, relógios, nomes e datas. Ela quer o tempo, todo o tempo do mundo, que é para conseguir respirar com clareza, com leveza, sem precisar acordar outra vez ofegante no meio do vazio que já foi a vida.

Ela foi ontem. Foi para barcelona.
Não apareceu no trabalho. Nem no bar.
Não disse nada, não deixou nada escrito.
E todo mundo sabe que ela não vai voltar.

terça-feira, agosto 03, 2010

depois das curvas do mar

Começou a escurecer tarde hoje. Duas curvas depois de sair da praia, encontramos uma reta longa, plana, que se perdia no horizonte iluminada pelos últimos raios de sol sobreviventes no céu azul, infinito por cima da cúpula das árvores plantadas de frente para areia, para o oceano. Pedalamos um pouco mais forte até começar uma descida leve, mergulhada por entre dois campos largos de plantações de uvas, uma dúzia de montanhas que subiam e desciam até as curvas mais distantes da Toscana. Senti no rosto o primeiro vento fresco do dia, uma brisa rápida, falha, que trazia envolta na maresia o cheiro do mar, dos barcos de pescaria estirados na areia, dos casebres de madeira e pedra erguidos no acostamento. Aumentei a música, virei meu corpo uma última vez para a água, para a costa da Itália, para os andarilhos que ficavam no caminho, e comecei a descer.

Fechei os olhos,
Eu vi você.

Bernardo Biagioni

quinta-feira, julho 22, 2010

Naquelas tardes de Paris

Naquelas tardes em Paris tudo que eu pensava era que tínhamos finalmente conseguido arrancar um fiapo de tempo da nossa linha do tempo, um filete mais colorido do que o caule, a linha central, e que parecia ficar ondulando livremente toda vez que algum vento suspirava para perto de si. Nossas conversas, caminhos e lampejos não poderiam fazer parte do real, do mundo real, onde tudo acontece por uma razão explicável, as ações, os gestos, e até o movimento caótico dos cabelos diante uma tempestade anunciada. Parecia sempre um sonho, um lapso da vida, do cosmos, uma chance transcendental de conseguirmos mergulhar de vez pelas veias recofontartes do mundo, essas estradas, essas viagens sem saudade. Nunca tínhamos horas para chegar, e nunca sabíamos quando iríamos embora, contando que não perdessemos o último metrô na estação do Louvre, em algum momento da madrugada. Naquelas tardes nós éramos livres, muito livres. E sabíamos disso.

Bernardo Biagioni

domingo, junho 27, 2010

Sob a lua da Toscana

Buona Notte, M.

Não te escrevo de Roma - conforme prometido - mas pelo menos o vento que entra pela janela aberta agora ainda tem cheiro de pizza, de massa, de algum vinho tinto que acabou de perder uma rolha em uma mesa de bar. É bonito isso. Florença parece respirar alguma coisa que não é normal na América, uma liberdade desmedida, uma vontade desajeitada de querer amar mais do que pode, mais do que caberia por dentro dos muros que separam o Centro Histórico da parte nova da cidade, um lado que nem vale a pena sair para conhecer. São quase uma hora da manhã por aqui - no Brasil o céu deve ter escurecido ha pouco - e até algumas horas eu mesmo podia ver dois filetes de sol colorindo a parede do quarto do lado da mesa de madeira. Desde que cheguei na Itália não tenho feito outra coisa senão escrever, escrever e escrever.

Pensei em você quando estava saindo de Belo Horizonte, no aeroporto, no avião, na escala em Lisboa, na partida para Roma. Nem sei dizer a razão. Não sei quantas vezes te vi em toda a minha vida, todas elas em um único dia - uma? duas? três? - mas, sinceramente, pouco me importa. Ainda consigo enxergar com clareza cada um dos seus olhares, a forma como você passa os cabelos por trás das orelhas, o jeito de sorrir um sorriso um tanto contido, reservado, dissimulado por entre todas as simulações de que é feito o mundo. Posso dizer que me apaixonei por você em algum segundo deste nosso encontro - ou desencontro - quando senti os nossos rostos se cruzando de longe, entre o ir e vir de dezenas de corpos perdidos em alguma tarde fria deste último outono. Senti em você um mistério. Um segredo. E gostei disso.

Hoje, cruzando a Ponte Vecchio de bicicleta sob os primeiros raios de sol do verão, imaginei como seria ter você aqui comigo, mesmo que fosse por trinta, quarenta minutos, sentada no guidom toda sem jeito, gritando para os turistas do caminho se afastarem para a gente poder passar. Eu poderia te levar no Parco delle Cascino, onde os galhos das acácias mergulham floridos sobre o filete de estrada que desaparece em um mar de grama verde clara, limpa, infinita até onde se consegue enxergar. E então a gente conversaria deitados na grama, soprando as pétalas dos dentes de leão que estivessem ao alcance dos nossos dedos, com os nossos sorrisos escondidos sob a melhor sombra de todo o campo, de todo o parque, de toda a Toscana.

Florença não me faz sentir saudade de casa, mas me faz sentir a falta de alguma coisa que eu nunca tive. É irreparável a vontade de largar tudo e vir morar aqui, se juntar a todos estes outros viajantes que circulam de esquina em esquina em busca de trabalho, drogas, pincéis, filmes fotográficos e cadernos de anotações baratos, onde possam rabiscar um pouco da angústia que lhes atormenta a serenidade da alma. São todos felizes. Mas eles sabem que são capazes de mais. Muito mais.

Tenho que morar na Italia - não dá para esconder. Você também, eu acho. Percebo isso quando o disco do Radiohead chega na oitava faixa, House of cards, que ecoa pelo quarteirão de uma maneira suave, alta, as notas fogem pela janela envoltas nas folhas das árvores que dançam no vento quente. Está de madrugrada, e ainda assim o vizinho do prédio ao lado faz um aceno com a cabeça como quem diz: "É isso aí, meu velho. E isso aí...". Devolvo o comprimento, caminho até a vitrola, e volto a música para o começo. A lua está lá no alto, incompleta, quase sorrindo. Parece até que ela sabe que Florença está em uma das curvas do nosso destino.


Bernardo Biagioni

quinta-feira, junho 17, 2010

Como amam os pássaros

Levantou os olhos e o sol já estava lá, impune. Olha – ele falou – esticando os dedos para tocar nos fiapos de luz que desciam meticulosos pelos traços adormecidos dela, que estava deitada ao seu lado com os pensamentos cerrados, longe de acordar. Sentiu um desejo doce de beijá-la, mas conteve-se quando percebeu que poderia despertar alguns daqueles sonhos encantadores que dançavam invisíveis por sobre seus cabelos embaraçados.

Levantou agora sobre as suas próprias pernas e se pôs a andar em direção ao astro, relutante contra a violentude dos raios que lhe incomodava as pálpebras recém-despertadas. De quando em vez se virava para trás para ver ela, e para ver a sua sombra, a sua silhueta que dançava involuntária pelo chão colorido de amarelo claro, como são os girassóis.

Levantou os braços para o oeste e sentiu a insustentável leveza do ser invadir cada extremidade do seu corpo, da sua alma estirada às nuvens que se dissipavam compassadas no céu azul. Felicidade – sentiu, e sorriu logo em seguida, sem mesmo perceber que continuava andando, caminhando, arrastando os passos pelo assoalho como passeiam os passos de tango. Fechou enfim os olhos, garantindo antes uma última olhadela para o vento, para o tempo, e para ela.

Mandou um beijo, não despediu.
E então começou a voar.


Bernardo Biagioni

quarta-feira, junho 16, 2010

Todas as noites existem razões para fugir

Nunca entendi essa de ser feliz. Nunca entendi essa de querer Ser - você já não É? Nunca entendi nem essa vontade de querer entender. Nunca entendi por que é que dizem nunca. Não entendo essa vontade de querer explicar. Nem mesmo toda essa vontade de chegar. Isso, chegar... Eu nunca entendo essa vontade toda de sair do lugar. Você quer chegar aonde, rapaz?

Eu não sei.
Mas será que já podemos ir?

terça-feira, junho 15, 2010

Quero te contar sobre a garota que eu amo

Nos apaixonamos pela primeira vez em um bar, no meio da cidade, no brilho dos seus olhos por cima das duas garrafas de cerveja vazias em cima da mesa eu percebi que tudo dali para frente não seria nada momentâneo, nada passageiro. Trocamos não mais que duas ou três frases – ou talvez um pouco menos - todas as nossas palavras eram rapidamente sucumbidas pelo barulho dos pratos da bateria que oscilava descompassada nas baquetas firmes nas mãos do sujeito negro escondido no fundo do palco, ele sempre sorria cinco segundos antes da música finalmente se libertar da alma do homem barbado que cantava todo o tempo de olhos fechados. Toda vez que eles sorriam a gente se entreolhava, se gostava escondido, era sempre como se tivéssemos nos desprendendo do mundo real das coisas, das vidas que vivemos até então, ela em sonhos, eu em sonhos desmedidos.

Antes da música terminar eu a puxei para perto, caminhos juntos para o fundo do bar e encostados em uma parede escura nos beijamos uma, quatro, oito vezes, até os nossos lábios adormeceram na felicidade profunda que corria impune pelas curvas sinceras desenhadas nos nossos rostos. “Vamos embora”, eu disse, ou ela disse, e agora seguimos de braços dados até a porta, até a saída, onde o universo inteiro nos esperava para mostrar que os nossos olhos estavam acometidos de Vida, de liberdade descabida, irreparavelmente prontos para enxergar tudo de forma diferente, como nunca fora realmente. Mergulhamos então na madrugada, nas nossas almas apaixonadas, e seguimos cantando até o meu carro – ou o seu carro – prontos para ir para qualquer lugar. Exatamente como sugeria aquela música que ouvimos em silêncio no bar.


Bernardo Biagioni
Led Zeppelin - Hey, hey, what can I do

segunda-feira, junho 07, 2010

Nós só precisamos viajar

Esta foi uma uma Viagem sem destino, isso eu posso garantir. Não sentimos outra coisa senão a liberdade da nossa Alma quando colocamos os braços para fora do carro e escutamos no silêncio do tempo tudo aquilo que o vento tinha para nos dizer, a brisa, a alegria que existe inebriada na vida despida pelo calor incessante das estrelas que fibrilam no Teto da estrada. No banco do passageiro estava um sorriso mais largo do que o meu; não havia nada ali além da felicidade plena, das entranhas da percepção escancaradas e prontas para enxergar a magnitude e a infinitude que é o Mundo, os Versos, os Universos. Vamos juntos – eu disse, enfim – olhando nos seus olhos, no fundo dos seus pensamentos desencontrados que ondulavam trôpegos e certeiros pelos Bosques mais distantes de cada uma das nossas desventuras até então reprimidas pela Razão humana.

Não tentei puxar o cinto porque pensei que seria contundente seguir adiante, mais adiante, dobrar todas as esquinas e acabar com todas as ruínas que permaneciam inabaláveis nos descompassos do meu peito, onde não devem existir preceitos nenhum para Amar, para se mergulhar no Mar. Nós vamos continuar – pensei - e senti que seria capaz de deslizar os meus dedos pelos contornos das montanhas perdidas no Sul, remodelar os desenhos apagados da estrada, reacender cada uma das estrelas que anoiteceram esta noite ofuscadas pela luz da lua que brilha impune sobre o fim do céu azul.

Não temos para onde ir e nunca vamos chegar. Nunca. Importa apenas que estamos indo, seguindo, bravamente resistindo contra a calmaria da infelicidade, dos amores que se amam sem vontade. Pisei um pouco mais fundo no acelerador e vi pelo retrovisor todos os nossos medos deslizando envoltos na escuridão desesperada do passado, dos tempos passados, dos dias estranhos que acordamos com o coração insistindo em deixar tudo para trás. Nós só precisamos viajar – falei, por fim, dessa vez só para mim – e repeti uma vez, duas vezes, três vezes, até parecer que estava cantando, rimando, ensinando ao meu peito como é que se ama, como é que se vive. É só viajando que o homem pode ser livre.

Bernardo Biagioni
Alexi Murdoch - All my days

quinta-feira, junho 03, 2010

Da última estrada de Cuba

Tudo começa com as mãos no volante, sempre com as mãos no volante. Dá para sentir na ponta dos dedos a potência que existe em algum canto do motor, a vontade que o carro tem de seguir adiante, avante, mesmo que as direções não estejam tão claras, devidamente sinalizadas. Essas são as minhas últimas horas em Cuba, na ilha de Fidel; inclino minha cabeça para fora da janela e sinto o vento do Caribe atrapalhar os meus cabelos, a maresia roendo a lataria já enferrujada da máquina grande e branca que corre trôpega pelos remendos desgastados da estrada. Deus deve ter abençoado este regime, ou a menos este povo – penso – enquanto encaro o sol forte de frente, vejo as árvores sacudindo suscetíveis às brisas que brincam entre os voos dos pássaros, as aves que cortam o céu azul escuro, como uma pintura simples, como um escrito de Hemingway.

Fica para trás Trinidad, Cienfuegos, Collòn, uma vila atrás da outra, uma vida atrás da outra, e em cada uma delas uma dúzia de sorrisos tristes, desesperançosos, perdidos no descompasso de uma fotografia que invento dentro da minha própria cabeça. Perco a conta de quantos rostos vejo na beira da estrada, nas margens das cidades, crianças e velhos de pé acenando, festejando e despedindo, todos eles ondulando distantes pelo parabrisas, pelas janelas laterais e por cada um dos retrovisores. O carro segue tropeçando firme em direção a Havana, não há mais ninguém no caminho senão viajantes solitários, homens que atravessam a ilha dia após dias de carona em carroças, na boleia de caminhões antigos, em carros despedaçados pelas viagens intermináveis que partem de algum ponto do oeste.

Agora na direita está o último bar, o último boteco, e diante da construção de madeira estão três homens conversando em silêncio, observando a vida, contando as vidas que cruzam a paisagem verde distante, as plantações de café que somem no horizonte, o mar por trás das montanhas. Lá dentro dá para ouvir Ibrahim Ferrer cantando pelos alto-falantes enquanto Ruben Gonzáles pincela as notas de um piano de calda pardo, longo, produzido melodias que fazem a senhora encostada no balcão mexer os dedos sobre a mesa de pedra. Se Cuba é uma ditadura, ela não sabe, parece não se importar, contando que a salsa continue impune, sarcástica, apaixonante e perversa, como bem canta Compay Segundo com um charuto grosso preso entre os dedos da mão esquerda.

Mergulho o braço para fora do carro, brinco contra a força do vento, e sinto no canto do corpo, no centro do peito, um sentimento seguro de felicidade. É impossível não ser feliz quando se tem a vida em movimento, os pensamentos entregues às curvas das ruas serpenteadas pela vontade quase profana de ir cada vez mais em frente, para o além, até o infinito. Uma placa indica que o meu destino esta à direita, dali alguns minutos estarei sentado no aeroporto. Penso na minha casa, no fim da viagem, na cor dos mares que encontrei pelo caminho e sinto, no fundo do peito, que Cuba sim é livre - mais livre do que eu. Faço a curva, Havana está a quarenta e seis quilômetros. Falta pouco, muito pouco. Mas eu não quero chegar.


Bernardo Biagioni

quarta-feira, maio 26, 2010

Orgasmos múltiplos

Hoje acordei com ela no telefone, do outro lado da linha, do outro lado do mundo, ofegante e enlouquecidamente apaixonada, apaixonada com a vida, dizendo que agora se sentia dona da própria poesia, dos desatinos destemidos que tinha descrito nas esquinas iluminadas da França por culpa daquele velho sujeito conhecido como Rimbaud, o poeta arrebatador dos descabimentos humanos, das escolhas perenes, dos sonhos platônicos adormecidos em peitos suficientemente preparados para receber a Salvação divina.

Sua voz tinha tudo aquilo que dizia Nina Simone enquanto não sabia que estava provocando um colapso no universo, de pé no palco do teatro empoeirado recitando versos perversos para uma plateia vazia. Eram – e ainda são - apenas dois ou três pagantes que suportam respirar tanta primaria, essa obra-prima pronta e desesperada que á Vida na sua essência, na sua insistência em se desabrochar em tantos cantos, em tantos acalantos, em cores e desamores perdidos nas músicas que atravessam cada um dos oceanos até despertar suspiros desmedidos em corações calorosamente desencontrados.

Ela falava e eu entendia tudo em silêncio, sem precisar de muito tempo, e em alguns segundos já estava respirando em descompasso pelo gancho, sentindo toda minha endorfina desaguar pelas artérias, correndo pelas veias, pelos vasos mais distantes, desestruturando a organização dos meus mais sensatos pensamentos. Vi, enfim, Clarice e Caio, pensei em Kerouac e resgatei Vinícius, todos eles juntos em uma mesa de bar, de frente para o mar, e depois na cama, aonde todos os seres irracionais se amam. Senti o mundo inteiro subitamente se implodindo em pedaços. Em pedaços múltiplos, despedaçados, loucos e entorpecidamente alucinados. Como orgasmos.

Bernardo Biagioni

quarta-feira, maio 19, 2010

Leva muito tempo para se tornar uma pessoa simples

Não quero que você se esqueça de hoje. E não falo só dos beijos, dos nossos desejos entregues ao tempo, ou ainda da ondulação do vento, o universo inteiro em tormento e nós dois encostados de frente para o campo, para as flores vivas do campo, nos amando em silêncio. Quero que seja eternizada essa simplicidade, essa nossa brincadeira de dizer sempre a verdade, de encostar rosto com rosto só para sentir uma alma respirando a outra alma, a outra aura, sem pedir nada em troca, nada de volta.

Quero lembrar de hoje no futuro, quando o mundo não for assim tão seguro, quando estivermos atravessando outros outonos em campos distantes, em caminhos contrários, em sentidos errantes. Vamos sorrir por termos sido pessoas simples, com vontades simples, os sentimentos certos, nada perversos por entre as desventuras dos nossos sonhos mais grandiosos, escrupulosos e entristecidamente enganosos. Não quero que desapareça tudo que conversamos, tudo que não evitamos, e a maneira como encaramos, um dia, como é uma noite amanhecendo.

Eternamente quero lembrar o dia em que nos apaixonamos.


Bernardo Biagioni
The Beautiful Girls - My lastest mistake

domingo, maio 16, 2010

Pelos lírios do campo

Eu não nasci para te perder, para me arrepender, para não ser capaz de desprender todas as palavras que se embaralham confusas e difusas na minha cabeça, nas minhas lembranças de ontem, nos planos despretensiosos para amanhã. Fecho os olhos e ainda consigo sentir o vento, o cheiro do frio, o sol amanhecendo por cima dos lírios do campo, os nossos sorrisos se confundindo pelo retrovisor do carro, no reflexo das janelas, nos nossos olhos contaminados pela felicidade plena. Chego a ficar sem o que dizer, sem o que escrever, subitamente sem fôlego, irremediavelmente louco no meio da lucidez que é o amanhecer do dia. Acordei hoje apaixonado - como eu nasci para ser – e agora agradeço a vida, às escolhas da vida, pelas duas chances que tivemos de viver. Juntos.

Bernardo Biagioni

quinta-feira, maio 13, 2010

Fragile Moment

Deixa eu passar aí pra gente fumar um cigarro - prometo que vai ser rápido - hoje acordei com tanto para dizer, um tanto para contar, um tanto que não dá mais para esconder. Não tomarei muito do seu tempo, da sua vida, serão dois ou três tragos e então a despedida, dessa vez bem contida, como não poderia deixar de ser. Quero te falar das músicas que andei ouvindo, dos caminhos que estive descobrindo e das tardes frias que senti saudade, que senti vontade de bater aí na sua porta para te roubar para mim – sim, simples assim – para enfim partirmos adiante, avante, como já foram os nossos sonhos, as nossas promessas, as nossas conversas desperdiçadas pelos percalços da insensibilidade humana.

Não, não quero te fazer mudar de ideia.

Será apenas a minha mão na sua mão, um abraço distante e um beijo – faz algum tempo que não te vejo como te via, e acho que o nosso velho encontro ao menos parece digno de não ser engavetado, evitado, voluntariamente desmemorado das nossas memórias. Tenho aqui comigo uma última carta, as minhas últimas palavras, letras combinadas em lágrimas que passei muito tempo evitando, adiando e prolongando. Vou ler nos seus ouvidos – no meio do silêncio absoluto – e em seguida eu saio, vou embora, anuncio que chegou a hora, a nossa hora, de nos enganarmos pensando que podemos ser felizes esquecendo a nossa história.


Bernardo Biagioni
Dubbly - Fragile Moment

domingo, maio 09, 2010

Sobre todos os outros amanhãs

Daqui para frente eu não serei responsável por nada que acontecer entre a gente. Nada. Não me culpe se nos apaixonarmos perdidamente no meio de uma terça-feira de frio ou mesmo se, assim, de repente, a gente inventar de desbravar os nossos instintos adormecidos em uma fuga rápida pelas entranhas despedaçadas do mundo, escondidas no fundo de uma dessas estradas abandonadas. Eu nada tenho a ver com os beijos que vamos inventar, os abraços que nunca vamos evitar, ou as flores que você vai encontrar escondidas sob cada uma das palavras que eu arriscar envelopar em uma carta cheia de cores, de deliciosos dissabores.

Daqui para frente eu não serei responsável por nenhuma das nossas límpidas lágrimas de saudade, das vontades que já se acometem das nossas almas, e de cada uma das infelicidades que baterão três vezes em nossas portas quando os nossos caminhos insistirem que devemos passar uma única noite separados. Não me culpe até por termos andando tanto tempo separados, insensivelmente despreparados para sentir no peito, sem medo, essa felicidade que só pode ser felicidade quando irreparavelmente compartilhada. Eu nada tenho a ver com os Encontros, com os Desencontros, com Vinícius, com Dylan e com a poesia da Vida, ou então já teria você aqui comigo, deslizando os dedos pelas gotas de chuva que escorrem desesperadas nessa última noite de frio.

Daqui para sempre não me culpe se você se pegar cantando sozinha no espelho, se passar um dia inteiro repetindo a mesma música, a mesma cena, a mesma conversa, mesmo que ela não seja nada complexa no meio dessa complicação que é o mundo. Eu nada tenho a ver com tudo que vamos dizer, com todas as escolhas que viermos a fazer, e com as palavras de amor que ousarmos combinar em equações fundamentalmente simples, tolas e aparentemente bobas. Não me culpe se vamos algum dia nos amar, se nunca mais vamos nos esquecer, ou se tudo isso subitamente desparecer.

Eu não tenho culpa do destino ter escolhido Eu e Você.

Bernardo Biagioni
Bob Dylan - Visions of Johanna

quinta-feira, maio 06, 2010

Marinheiro Só

Coitado do homem,
O homem à deriva no mar...
Ele não é de amar,
Ele é deVagar.

sexta-feira, abril 30, 2010

A eterna insalubridade do nosso destino

Não é para fazer sentido. Nem mesmo quero ver sentido no silêncio que sinto quando minto no espelho do banheiro tudo que pensei ao longo de um dia inteiro. Meu sentimento de felicidade é corriqueiro – mas, qual não é? - a vida nada mais é do que uma profusão de milésimos de segundos de distúrbios involuntários, cenas e quadros divididos em sorrisos e em desesperos, amor e medo, combates desajustados na leviandade do destino.

Veja eu e você. Eu e você não fazemos sentido. Nosso encontro é um embaraçamento do cosmos, uma armadilha cruel dos desatinos que desafiam a ordem natural das coisas: a felicidade depois da tristeza, o crescimento depois da vida, o abraço antes da despedida, o beijo depois do beijo. Não somos assim – e nem nunca seremos. Somos vítimas dos segundos atropelados pelos segundos seguintes, nossos dedos dados são relapsos do requinte que resiste na sofridão dos peitos mais puros.

Não iremos sobreviver. Você sim, mas eu talvez. Estamos condenados a se desencontrar no intermédio do caos, na matemática da vida, nos prelúdios obscuros que nunca se justificam. Somos grande demais para este universo, nenhum verso soaria correto enquanto tentasse racionalizar o que é só emoção, apenas emoção. Padeceremos, então, separados até o último momento, eternamente despreparados para chorar e ser consolado, sorrir e ser acompanhado, amar e ser amado.

Bernardo Biagioni

sexta-feira, abril 23, 2010

Esta não é uma carta de amor

Escute só todo este aperto do meu peito, chegou a hora de você tirar proveito de todo o despeito que causei em você nas palavras passadas, nas cartas não assinadas, nas madrugadas acordadas que atravessamos sozinhos em nossas casas vazias, nossos corações sentidos, sofridos e erroneamente perdidos. Sinta só a minha infelicidade, os meus textos tristes arrastados pela saudade – desde que desistimos da nossa história, tudo que fiz foi imaginar quais seriam os próximos capítulos, os próximos versículos, as próximas dezenas de cenas que poderíamos ter escrito juntos.

Depois de você, eu nunca mais fui o que costumava ser, nenhuma manhã amanheceu como antes, nenhum sol entardeceu como durante, e nenhuma noite anoiteceu como depois. Minha vida se dividiu em versos, minhas músicas perderam-se em sentidos incertos, caminhei sozinho por ruas e esquinas, em prosas e poesias, tentando inutilmente te encontrar. Da noite para o dia virei errante, andante do desamor, tudo que escrevi voou com o vento, embaralhou no tempo e foi mergulhar no mar. Depois de você – e da noite para o dia – descobri enfim o que era amar.


Bernardo Biagioni

terça-feira, abril 13, 2010

love will tear us apart again

Só você – e apenas você – foi capaz de arrancar de mim todas as minhas súplicas de amor, todas as minhas frases disfarçadas em dor, todos os meus versos desmedidos, incompreendidos, desprendidos sem qualquer dosagem insincera dos cantos e acalantos que acometem a minha alma. Apenas você viu nos meus olhos o brilho das estrelas envelhecidas, os espasmos dos meus lábios como cometas colidindo, meus passos incalculados como passeiam os viajantes mais certos, completamente incertos em seus caminhos pelo destino. Você encontrou em mim as minhas verdades mais reservadas, meus segredos adormecidos, cada um dos meus sonhos inatingidos se desafiando no colapso do espaço pequeno, tímido e contido que sempre existiu entre nós dois.

Só você – e apenas você – me flagrou sorrindo de verdade e sem sentido, nosso futuro inteiro em perigo e os nossos dedos entrelaçados logo na altura do peito. Só você viu o sol engolir a madrugada comigo, os primeiros raios da manhã caminhando vagarosamente pelas montanhas do oeste, a mesma direção que combinamos, em silêncio, que um dia fugiríamos para não mais voltar. Só você entendeu inteiramente as minhas saudades, as minhas vontades vespertinas, as palavras de desarmonia que arrisquei relembrando nossos primeiros abraços apertados de despedida. Só você – e apenas você – existiu de verdade na minha alegria – Sem você eu simplesmente não seria nem metade dos versos que sobrevivem na minha poesia.

Bernardo Biagioni

segunda-feira, março 15, 2010

Promessas descumpridas

Prometi que não me apaixonaria por você, que não te ligaria, que não pensaria como teria sido se não tivéssemos voltado para casa antes de ver o sol nascer na última noite que estivemos juntos. Prometi que não ouviria mais a terceira faixa do Wilco, a quarta do Fleet Foxes, a quinta do The xx, cheguei a esconder o Blonde on Blonde embaixo do banco do carro, fingi que não conhecia Visions of Johana e todas as outras músicas de amor que poderiam desprender os pensamentos e sentimentos que estive tentando evitar. Prometi que dormiria cedo, que acordaria tarde, que não escreveria mais nenhuma das minhas verdades, e que você ficaria para sempre nas minhas lembranças do passado, das noites passadas, das nossas conversas que tanto enganaram o silêncio das nossas vidas solitárias.

Não funcionou, veja bem.

Aqui estou eu escrevendo, pensando e insistindo. Não durmo e continuo escutando tudo que tinha escondido dos meus sentidos, das minhas vontades enlouquecidamente apaixonadas, das minhas palavras desencontradas nas estrelas pequenas que pontuam o céu limpo e escuro. Irreparavelmente apaixonado com tudo que fomos, com tudo que nunca poderemos ser, e até com o silêncio que agora existe entre nós dois, dias e meses depois de termos embaralhado os nossos destinos em uma dúzia de sorrisos longínquos e sinceros. Nunca arrependido, mas agora – e eternamente – perdido dentro da minha própria vida, aumentando e abaixando, escrevendo e apagando, negando e, finalmente, se acertando com vento, ao desalento, à mercê do nosso desesperado contratempo. Estou me libertando e, enfim, me entregando. Tardiamente te encontrando aqui: dentro de mim mesmo.

Bernardo Biagioni

quarta-feira, março 10, 2010

As vezes eu ainda preciso de você

Noite atrás de noite eu me pergunto quando é que você foi, se você volta, se amanhã eu vou te ver parada em pé em frente a minha porta, ou se os nossos lábios vão voltar a se encontrar em alguma madrugada desta estação que acabou de começar. Me pergunto quando é que a saudade vai falar mais alto que a distância, que essa nossa insistência em negar os nossos instintos mais decididos, incisivos, desmedidos e incompreendidos pelos acalantos sinceros das nossas almas continuadamente perdidas. Também me pergunto se dançaremos mais uma vez juntos – como na nossa primeira noite de Liberdade – se vamos discutir os problemas do mundo sorrindo outra vez, e se vamos levar adiante os nossos planos de fugir, de sair, de mergulhar pelos filetes de luz que a lua desenhou nas montanhas escondidas em cada uma das esquinas desta cidade. Deito na cama, então, sem respostas, sem certezas e razões, esperando meus sonhos acordarem para que eu possa, enfim, dormir com você mais uma noite. Por apenas mais uma noite.

Bernardo Biagioni
The xx - Heart skipped a beat

quarta-feira, março 03, 2010

Nossas insinceras despedidas

Segurei na palma da mão a última lágrima que escorreu do seu rosto. “Porque está assim?”, perguntei, por fim, depois dos minutos de silêncio que se seguiram depois do último beijo, dos últimos beijos. Silêncio, de novo. Vi-a abaixar o rosto pausadamente, encarando os próprios pés se arrastarem pelos azulejos grandes e espaçados do chão, o mesmo chão onde já tá tínhamos deitados tantas e tantas vezes para encarar o teto branco, imaginando o céu estrelado. “É porque te amo”, respondeu, baixinho, ainda com os olhos mergulhados na imensidão profunda da sua alma, de onde vinha toda a sinceridade das quatro palavras despejadas com uma força que era só sua.

Sorri, sozinho.

Ela voltou o rosto para cima, mais uma vez com calma, e dessa vez trazia consigo um daqueles seus sorrisos mais enigmáticos, performáticos, e misteriosos. Chegou seu corpo para mais perto, pegou minhas mãos nas suas mãos que pairavam lá embaixo, na altura da cintura, e puxou meu rosto para perto, para bem perto, para que seus lábios abertos pudessem alcançar um dos meus ouvidos. Repetiu, então, a frase que tinha dito antes, dessa vez quase em silêncio, e repetiu de novo, e de novo, como se quisesse eternizar nos meus tímpanos e sentidos uma verdade que não era só de hoje, nem só de amanhã.

Limpou as lágrimas, sozinha.

Deixou seu rosto correr para os lados, buscou nos pensamentos e nas suas incertezas uma certeza que estava entalada na garganta, no peito e no despeito, e brincou mais uma vez com os segundos do tempo. Seus olhos encontram os meus, se desencontraram, e as nossas mãos se apertaram e se desenlaçaram pela última vez, lá embaixo. Tomou um último gole de vento, e de coragem, trouxe de novo seus lábios para perto, agora certos, e confessou outra vez nos meus ouvidos, sussurrando: “Mas preciso ir embora”.

Caminhamos então para a porta.
E nos despedimos, mais uma vez, sorrindo.


Bernardo Biagioni

quarta-feira, janeiro 27, 2010

Acordar de sonhos intranquilos

Ela disse que ficaria mais cinco minutos, nem um segundo a mais. Levantou da cama com calma, cobriu todo o corpo com uma camiseta velha que tinha achado no guarda-roupas, e acendeu um cigarro na janela aberta, olhando a cidade dormindo lá em baixo. Pensou no que tinha feito, no que estava fazendo, e no que faria mais tarde, trinta minutos mais tarde, quando o dia estaria amanhecendo. Pensou em nós dois, no que conversamos antes, nas promessas que fizemos para depois, e no agora - agora que tudo estava fazendo sentido. Então apagou no silêncio o cigarro, e deitou mais uma vez do meu lado. Sorrindo.

Bernardo Biagioni

domingo, janeiro 24, 2010

Viajo porque preciso, volto porque te amo

Tudo mudou desde que você foi embora. Choveu quatro ou cinco noites seguidas, fez um pouco de frio, e tive até que aposentar alguns dos meus destinos preferidos, todos que lembravam você. Coloquei mais uma vez a minha vida na estrada, dessa vez sozinho, e tentei me convencer que um pouco de viagem me faria esquecer de nós dois, das nossas conversas, e dos olhares que trocamos no dia que saímos por aí para desbravar as entranhas esquecidas do mundo.

Sinto sua falta, confesso.

Ontem, no caminho, tudo me lembrou você, todas as cidades, bares e botecos, as casas brancas pequenas estiradas no meio das montanhas, e as gotas de chuva tristes que dançavam no ar antes de serem atropeladas pelo carro, pelo vento, e pelo movimento das folhas na copa das árvores. Pensei em você quando encontrei uma cachoeira escorrendo pela serra e pensei depois, quando mergulhei fundo na água, bem fundo, vendo os peixes se espalharem pela luz do sol submersa além da superfície.

Você foi, mas ficou no meu peito e nas minhas palavras confusas, deixou em mim uma saudade solitária, tímida e contida. Se hoje vivo é porque sigo indecisamente firme, silencioso e certo na estrada; dirijo trôpego pela direção errada sem medo nenhum de aceitar e reconhecer: como doeu amar você.

Bernardo Biagioni

quinta-feira, janeiro 21, 2010

Cristais

Fica perto do céu e não dá medo de cair, mesmo se colocar os pés para fora das pedras que ficam no ponto mais alto da montanha. De noite dá para imaginar o mar mergulhando na escuridão do horizonte, ilhas e cidades distantes cintilando, brilhando e riscando a imensidão da madrugada. Tem sempre cheiro de chuva, um vento frio que nunca dói sentir e ainda de olhos fechados dá para ver as estrelas, os planetas e os carros que passam lá em baixo. Acelerando, indo, e voltando. Pegando o caminho mais longo para casa.

Bernardo Biagioni

quinta-feira, janeiro 14, 2010

Pessoa

Até que a gente desapareça haverá vestígios, restos e resquícios de tudo que sentimos enquanto fomos só e apenas enlouquecidamente apaixonados pelo mundo e, sobretudo, um pelo o outro. Nossos beijos no escuro, nossos silêncios repentinos e nossas conversas cheias de vontade de serem mais sinceras, menos contidas. Ficará ainda um tanto de saudade, um pouco de vontade de voltar no tempo, e uma certeza imensuravelmente plena, de que até o nosso desencontro tenha valido a pena.

Bernardo Biagioni
Bedouin Soundclash - Until we burn

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Leste

Te pego aí na quarta, ou talvez na terça, e antes de anoitecer colocamos as malas no carro e partimos, no caminho decidimos que caminho vamos pegar. Pensei em ir para o mar, alguma cidade no mar, um lugar onde a gente possa mergulhar os pés na areia e ficar ouvindo o barulho das ondas sem se preocupar com o que ficou para trás, no passado. Não conte para ninguém – ou apenas para quem possa entender – e já pode ir se preparando, se arrumando e se libertando. Porque a gente vai sem ter dia para voltar.

Bernardo Biagioni

terça-feira, janeiro 12, 2010

Fora no fim de semana

Quero viajar com você. Te ver do meu lado enquanto estivermos indo, seguindo e avançando, desenhando nossos passos no mapa enquanto cortamos a madrugada fria. Ver seus cabelos voando pela janela aberta, as estrelas mergulhando no contorno das montanhas e sentir mais uma vez o cheiro do campo, das cidades que ficam no caminho, todas iluminadas. Minhas mãos nas suas, as nossas conversas todas mudas, e a nossa saudade lamentando, se esvaindo, e recusando. Inutilmente resistindo ao que é inevitável, irreparável e necessário. Você e eu.

Bernardo Biagioni
Neil Young - Out on the weekend

terça-feira, janeiro 05, 2010

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Você, Tim Maia, a transa de Caetano Veloso, Neil Young em Helpless, a gaita de Helpless, os lamentos silenciosos de Slow Blues, as ervas e cervas de Charles, os encontros com o comandante Kerouac, noites com Simone nos becos dos bares sujos do continente sul-americano, tardes de sol em estradas perdidas com os solos de Page, os nossos beijos deitados na cama, no canto da cama, as taças de vinho quebradas, as noites atravessadas no álcool, no carro, no banco de trás do carro, nas ruas desertas cheias de mistério, de medo e de paixão. A gente com tudo, e ainda querendo mais. Tempos estranhos, eu sei. Tempos que não ficam para trás.

Bernardo Biagioni