quarta-feira, dezembro 24, 2008

Testamento Mineiro

São três e meia da madrugada e na minha frente só uma estrada. Ela corre o horizonte até se perder na primeira curva, desaparece nos galhos das árvores que seguem dançando em harmonia com o vento. Não tenho para onde ir, mas não existem mais razões para ficar. As remanescências do meu conservadorismo cristão tentam prender-me pelos pés e descompassar as batidas do pulso. No retrovisor está Belo Horizonte, a cidade que vez ou outra não faz jus à sua alcunha. As luzes dos prédios que vão serpenteando pela minha janela lateral estão dormindo. As pessoas da sala de jantar estão dormindo. Lá na frente vai um último carro, mas a sua velocidade denuncia que está sendo arrastado pela desvontade de continuar. Eu preciso seguir. Preciso me livrar das montanhas, desse minério que descolore a vivacidade do meu corpo. Não dá mais para ser mineiro e continuar me arrastando pelas ruelas estreitas destas madrugadas. Aqui todos estão mais preocupados em ter grandes casas e desfilar com os carros do ano. O cinema dos bons filmes está perdendo público para aquele do grande shopping - se existisse um campeonato para isso, pela primeira vez me orgulharia de me figurar entre os perdedores. E as pessoas não estão lendo. A classe média está gastando seu tempo trabalhando em lojas de roupas, acessórios e artefatos eletrônicos. Os medianos trabalham para se auto-sustentarem em transações comerciais frívolas e egoístas - Ninguém reparou que a pobreza está crescendo. Achei que a salvação estaria no submundo, nos óculos de armação retangular e nos braços que carregam Rimbaud e Machado de Assis. Que nada. Descobri depois que só estavam posando para uma última foto conceito. Este aqui não é mais inteligente que aquele lá - Estão todos competindo pela própria ignorância de viver. Citam poetas, mas nunca fugiram de casa. Citam estradas, mas só cruzaram as fronteiras do estado naquela última viagem para Cabo Frio. Estão todos morrendo lentamente, sem saber. Morrem antes de perceber que têm a chance de viver. Os mineiros estão alimentando a desgraça de viverem cercados, estão presos e engasgados dentro de seus próprios anseios. A linha do trem que ia até o Rio de Janeiro não existe mais. Não é a toa, todo mundo sabe bem. Pois bem. São quase quatro da madrugada e na minha frente só uma estrada. O caminho é longe, mas, pela primeira vez, estou me sentindo confortável. A lua mergulhou atrás das montanhas, há pouco, e não deve voltar por agora. Sigo escutando Muddy Watters e tenho muito pouco com o que me preocupar. Mantenha-se acordado - Te escrevo quando chegar lá.

Bernardo Biagioni

quarta-feira, dezembro 17, 2008

De dentro da Heineken (II)

Já faz algumas semanas que ele chega atrasado. Não sente mais fome, mas continua se alimentando daquela poeira toda: Bukowsky, Ginsberg e Rimbaud. Fica andando com eles pra cima e para baixo, como se fossem amigos, dá pra acreditar? Também tem cheiro de erva. Ele acha que não sei que aqueles incensos na porta do quarto são para disfarçar o cheiro de erva. Aí entra no elevador meio tonto - ele não sabe, mas a vizinha do quinto andar já percebeu. Então dá um segundo trago assim que chega na garagem. "Não tem ninguem por perto", exclama baixinho enquanto tenta fazer o isqueiro funcionar pela terceira vez. Na quarta coloca fogo na mão, mas não sente tanto quanto antes. O carro não está lá. Merda. Tenta lembrar do último estacionamento, "talvez a rua lateral". Uma raiva latente corre por seu corpo até desaparecer num sorriso enigmático. É como se, por um momento, visse glamour naquilo tudo. Então acelera pelos ruas estreitas da cidade grande, as luminárias dos postes correndo pelo retrovisor. Vai serpenteando o carro pelas ruelas com destreza, cortando pelas esquerdas, centros e direitas. Não tem o medo de antes. Nem deve ter de novo. Escuta agora Piaf e tenta parecer francês em todo sinal de trânsito que respeita. Como se o motoboy importasse. Está sempre atrasado, mas nunca tem compromisso. Eu sei que ele tenta ser respeitável. Em alguma hora da madrugada ele volta. Custa acertar a chave na fechadura - isso explica a maçaneta arranhada - e deita no primeiro móvel que o aceitar. Ás vezes encontro-o no chão, sorrindo. É, ele está sempre sorrindo. Então arrasto seu corpo até um colchão velho e coloco um copo d'água bem do seu lado. Ele costuma ter sede nestas madrugadas. Bem, você sabe como é...


Bernardo Biagioni

sexta-feira, dezembro 12, 2008

4:00am

Era alguma baladinha romântica, uma latinidade que só pode ter sido importada de Cuba. Lembro que tinha um saxofone incendiário que corria pelas paredes até explodir no chão. E ela usava um vestido daqueles coloridos que ficava dançando com seu calcanhar, bem devagarzinho. Balançava seu corpo com leveza e calmaria, como se o mundo girasse a seu favor. Eu continuava deitado, encarando-a, sobretudo para resguardar minha pose racional para enquanto não rompesse a madrugada. Por fim, ergui-me sem lamento, tomei seu corpo pelo centro e estiquei até onde pudesse ser esticado. Deu com as costas no assoalho lavado e voltou com força suficiente para me derrubar. Segurei-me na parede e deixei cair o quadro de Gardel. "Incompriensível", devo ter reclamado. Deitei-a logo ao pé da cama e desatei o nó forjado da minha gravata. Um traço gelado de liberdade desceu ríspido pela espinha até arrepiar-me a nuca. Deslizei meus dedos por suas costas até conseguir o mesmo efeito. Cravei as unhas em alguma parte de seu corpo que tremeu. Olhou-me, então, com raiva e avisou: "menino, não esqueça quem eu sou". Reclamou o que eu clamava, vestiu o vestido pelo avesso e voltou a dançar.

Desgraçada.

Bernardo Biagioni

quarta-feira, dezembro 10, 2008

Sonho erótico de uma noite de Verão


Não passavam das quatro horas da madrugada - disso lembro bem. Eu tinha acabado de chegar de Kahuil, um vilarejo perto de Pichilemu, a outra vila onde eu estava hospedado. Trabalhava ali como jornalista, perdido no meio do Chile como um bom entendedor de surf que não sou. Não havia ninguém por perto e meu espanhol vez ou outra se confundia com um italiano ainda mais rudimentar. O pânico descia pelas frestas de suor na testa até romper no peito aberto, nítida expressão dos 32º que assolavam minha serenidade, mesmo durante a noite. O orvalho matinal seguia em seu tormento de lubrificar a janela dos carros estacionados, uma investida inútil que não apagava a chama que consumia toda aquela lataria enferrujada. Uma segunda onda de pânico veio quando ouvi vozes de algum lugar perto do mar. Pensei nas ondas, em sua inescrupulosa força que invade pela noite invisível até morrer na areia. Senti medo do meu destino ser semelhante. Esfreguei os olhos pela décima vez e apertei os passos, atracando os dedos nos chinelos que havia comprado no dia anterior. Foi então que percebi os contornos de um corpo extendido na praia. Era inevitável pensar na morte. Mas ali estava algo em movimento, cabelos loiros se misturavam à areia que era levada pelo vento. Era uma dança constante, desinibida e intensa. A garota estava nua, como fui notando à medida que chegava mais perto. A sua solidão era acompanhada pelo mar que refletia uma imensidão de estrelas, cada qual com suas brincadeiras nas ondas, como algas, sendo guiadas pelo caminhar das águas. Prendi minha respiração e continuei caminhando por entre as folhagens, tentando dosar o espírito voyeur que aflorava do meu corpo. O crepitar dos galhos que eu seguia pisoteando com cuidado fez curvar o rosto da menina. Abaixei. Ela levantou-se sem se vestir e veio andando sem dificuldade na areia fina, até parar a alguns metros de onde eu me escondia. "Pode sair", falou, baixinho, quase num sussurro. Obedeci, mesmo com as pernas visivelmente instáveis. Parei bem à sua frente e silenciei qualquer indício de respiração que pudessem exigir os meus pulmões. Ela me olhou inteiro, sem esquecer nada. A eternidade daquele momento foi interrompida por uma ordem: "Tira!", disse, apontando para a minha calça lavada pela maresia oceânica. Obedeci, pela segunda vez, enquanto fitava seus olhos - eu não conseguia encontrar outro lugar confortável para repousar minha visão. Ela sorriu, talvez o sorriso mais malicioso que este mundo já teve, e correu os dedos pelos cabelos com tranquilidade. Sem falar nada, virou-se lentamente e saiu andando até mergulhar de novo na escuridão. Antes que desaparecesse por completo, porém, chamou-me por um nome que não era meu e sorriu de novo. Olhei para os lados sem receio e sai em disparada. O caminho estava desenhado na areia.

Bernardo Biagioni

sexta-feira, novembro 21, 2008

B.B.

Sou o poeta que consome os desprazeres da vida. Sorvo das íntimas misérias que abalam os versos sinceros de outrem. Sou o incrédulo indiscreto que corre os olhos pelos caminho de outrora. Bêbado, maníaco e alucinado vou me arrastando pelo cotidiano massacrante da aurora. Sou o desencontro macabro da penumbra matinal. Os sorrisos perdidos nas despedidas de desdém. A mentira que corre pelo corpo e não volta. Sou a volta do crepúsculo tardio que não foi. Viajo no tempo sem você e com ninguém. Mergulho nas profundezas messiânicas para erguer-te um salvador. Sou fraco e forte, numa mistura ainda aquém. Sou rápido e ríspido, como nos desenhos da esquina. Desatraente e senhor do meu próprio desatino, sou o que há de pior em você, também. Incoerente e inoportuno - Eu sou uma farsa, meu bem.


Bernardo Biagioni

quarta-feira, outubro 08, 2008

Cansei

Cansei. Cansei dos amores imprevisíveis, das paixões inatingíveis e destes sonhos momentâneos. Cansei dos versos tropeçados, das trovas mal-cuidadas e do nosso desencontro. Estou farto de horário desmarcado, calendário descuidado e desta agenda pouco atenta. Não quero mais que caminhemos em direções contrárias, todas aquelas insistências de namorada e este mal-tempo no meu realento. Cansei do sorriso que não foi trocado, de todo beijo que não foi roubado e essa poesia mal-levada. Não acredito mais em distância e toda essa cobrança que não é digna de nós dois. Cansei do que foi de menos e não quero que sejamos tão jamais. Agora eu quero ela. Agora eu quero mais.

Bernardo Biagioni


terça-feira, setembro 09, 2008

Estrada

Mas, me diz: e se eu largar tudo? Largar o verso, o caminho, o sozinho e o inverso? E se eu sair pela estrada? Largar mão de sofridão, solidão e futura namorada? Apostar a minha miséria, colocar a minha cabeça à prova? E se eu deixar pra trás o escrito, o versículo e o proseado matinal? O Sorriso, a rosa e a cola? Largar mão da droga, da ex-sogra e o temporal. Cansei, não vale? Pensar dói, escutar machuca. Sou menino, olha? Não sei negociar, pechinchar, reclamar ou desconversar. Eu sou menino, não vê? O meu destino não prevê tamanha cobrança. Eu quero minha raiz, não crê? Quero a poesia sincera que marcou meus dedos de tinta. Não quero maquinizar, padronizar e nivelar. Preciso voar. Me deixe ir, senhor doutor? Me deixe arregaçar as mangas arregaçadas e descobrir o mundo - de novo. Eu quero de novo. Chega de tempo, atento, tormento e ilusão. Eu quero os 20 anos que você me mandou ter. Me dá? Largar mão de bobagem alheia, desapontamento e carreira. Me dá uma dose de liberdade, picaretagem e sinceridade? Larga mão de mim. Me vê uma estrada?

Bernardo Biagioni

domingo, setembro 07, 2008

Desencontro Marcado

Ah! A maneira como ela joga os cabelos para trás. O homem é bobo, não percebe a sutileza, a coesão dos movimentos. A forma como empurra os problemas do mundo para a esquina da vida. Ela anda com seu vestido rodado rodando os anseios dos medos, contornando as incertezas dos desejos. A facilidade com que prosa, roga as alegrias alheias para uma composição amena de tranquilidade. Ela canta e não descobriu. Ela gesticula os versos menos perversos que o tango cigano ousou arriscar. É uma valsa. Ela valsa com os tormentos dos momentos que esqueceram de chegar. A maneira como conversa. Versa uma organização perfeita de palavras certeiras para um coração apaixonado. Envolve ainda o descrente, crente que o amor se esqueceu de amar. Ah...E quando ela brilha os olhos. A fraqueza é tão forte que parece de propósito. Acorda o meu coração desacordado do poder da desilusão. Eu quero encontrar o desencontro desse encontro. Se o desEncontro não fosse um encontro, ele não teria a hora marcada estampada alí no fim. Vem hoje! Vem depois! Eu te quero assim: perdida no encontro de nós dois.

Bernardo Biagioni.

sábado, agosto 30, 2008

Corra.

Escreva. Na dúvida aponte o teu lápis desapontado e escreva. Na certeza, apague. Corra os dedos pelos cabelos ao menos duas vezes ao dia. Tenha certeza de que a calvície ainda não chegou. Ouça música. Faça música, sempre, todos os dias. Compre um violão, por que não? Afine as cordas desafinadas e toque. Se desafinado, toque mais alto. Brinque com os brinquedos da vida antes que ela faça de você um brinquedo. Corra. Não por emagrecer, dieta ou merda parecida. Corra por prazer. Descalce os calçados que estiverem caçando a sua vida. Sinceridade. Você já foi sincero hoje? Mas, minta. Minta para falar a verdade. Seja verdadeiro na hora de inventar a mentira. Arrisque-se, já tentou? Na dúvida, siga em frente. Na certeza, fique quieto. E ame. Não por emagrecer, dieta ou merda parecida. Ame por prazer. Desamarre o seu coração amarrado na prisão da vida e se entregue. Venha ser preso. Venha ser solto. Corra!

Bernardo Biagioni

terça-feira, agosto 05, 2008

Valsinha V

Quanto vale o desgosto de gostar de você? Encarar-te os olhos e enxergar os meus medos mais íntimos adormecerem. Quanto vale a graça da desgraça de precisar de você? Caminhar sozinho pelos caminhos sombrios da cidade iluminada e lembrar dos teus olhos. Sentir-se se seguro. Quanto vale a segurança de sentir-se seguro? Abraçar os teus amassos apertados no banco de trás. Vamos lá pra trás? Quanto vale escrever-te as palavras certas? Me custaria a vida, me valeria a sorte? Eu descobri que te amo, pode? E eu não sei amar, nem mentindo, nem me fazendo acreditar. O toca-fitas enferrujado insiste em lembrar de nós dois. Eu te quero, depois. Escorregar o meu pensamento insatisfeito pela satisfação de querer-te. Quanto vale um cinema com você? Eu quero me mudar para uma câmara escura. Eu quero um rolo cinematográfico rodando a história de nós dois. Eu preciso de você, pois. Alimentar os meus dedos de paixão e deslizar os meus versos viciosos sobre teu corpo carente. Quero deitar-te de bruços e despejar sobre ti os meus versetes mais decentes. Eu te quero perto. Quanto vale ter você por certo? Mentira, eu não quero certezas. Me satisfaço com a legítima frieza de praguejar. Ajoelhar-me aos céus, declamar o meu penar. Estou sofrendo, não é lindo? Estaria mentindo se reclamasse o meu caminhar. Estou à caminho. Quanto vale você comigo? Dividir contigo os prazeres mendigos de uma vida iluminada. Quero dançar a Valsinha cinco. Tantas vezes brinco, mas agora eu vou me endireitar: Quanto vale o teu coração? Arremate, coloque a leilão. Eu vou te comprar.

Bernardo Biagioni.

quarta-feira, julho 30, 2008

Valsinha IV

Tenho saudades, pode? Sem essa de buscar beijar o teu beijo em outros beijos alheios. Eu quero o seu, sim? Quero jogar o meu pensamento enlouquecido para cima de seu pescoço descoberto, beijar-te no centro, olhar-te de perto. Não quero o murmúrio dela, toda aquela clientela freguês do meu refinado português. Quero sentir medo, como quando contigo. O medo sofrido de escolher os provérbios incertos, nos momentos perversos. Certo? Não quero mentira, tanta poesia mendiga em cima de um amor banal - ou seria carnal? Quero dançar, você dança? Arrastar as mangas das mangas envelhecidas do meu esperar. Não espere. Eu não te quero como quando queria aquela. Toda aquela aquarela para cima de um preto e branco. Você é colorida, entende? Vestígio merecido de toda iluminação que me devaneia a mente. E sem essa de chorar as minhas lágrimas sobre os ombros de outrora. Na verdade, eu te quero agora. Quero arrastar os meus passos de malandro para cima de seu humor cigano. Pra que mudas tanto? Se todo o breve encanto do meu canto repousa sobre o teu caminhar? Fica? Eu vou lhe serestar! Três acordes, a viola está afinada. A sanfona vem no dorso, a gaita foi desempenada. Segura essa lamúria que eu vou te pedir para voltar. Um, dois, três... Essa é a Valsinha IV. A quinta vem logo atrás.

Bernardo Biagioni.

terça-feira, julho 29, 2008

Valsinha III

Eu não sei falar latim. Mas escrever-te-ia assim, se tanto fosse necessário. Aquela estória de ser poeta e não saber amar... Eu não sou poeta (sou?) e não sei amar. Mas eu sei amar, também. Sei amar os teus lábios, sim? Eu conheço o teu caminhar. O barulho como desliza a tua rasteirinha de forma sorrateira pelo beco escuro da minha vida - miserável? Mas eu sou um tanto feliz, juro. Contudo sou vítima deste desafeto inoportuno de querer-te por demais. Eu te quero demais. Sei ate quando teus olhos terão de piscar. Posso sentir a tua musculatura facial se curvando à um sorriso inocente, decente como não se vê mais. Você é linda, pois eu digo. Linda ate quando tenta parecer chata, opaca da luz que seus olhos procuram cintilar. Você é um beijo. A ligação entre dois lábios carentes, duas mentes descontentes de se verem sozinhas - num mundo febril? Eu sou gentil, vale esta rima? Eu posso escorregar os meus dedos esquerdos sobre todo seu corpo, sem parecer maníaco ou louco. Eu sou louco por você. Queria poder negar sem medo para o meu espelho que este coração de merda está batendo por você. Mas sou fraco, lembra? Sou fraco da cabeça, desde o momento que toquei em você. Eu toquei uma canção, não? Alguma bossa-nova velha perdida no meu aiaiai Brasil. Eu te quero, viu? Quero como queria querer alguém lá quando escrevi, e não menti, a minha primeira poesia. Não vou falar que te amo, porque não sou poeta. Ou não sou poeta porque não vou falar que te amo? Na verdade, quem se importa? Adoro-te.

Bernardo Biagioni.

segunda-feira, julho 14, 2008

Não sei não!

Eu não sei. Confesso que não sei. Não sei escrever-te meu pranto, o tão seco acalanto de um antigo trovador. Não sei segurar os teus braços, abraçar os teus abraços e te pedir paixão. Eu sei amar, seria digno, então? Cruzar o realento atento do mau-tempo que não deságua em meus oceanos - De lágrimas? Mas não choro, porém. Quisera eu ter-te comigo, sozinhos. Um cinema, dois. Três barzinhos, quatro? Quero galgar teu corpo em busca de um beijo. Escorregar o meu palpear pelos seus traços, alcançar os seus compassos. Mas não sei brincar. Sei sorrir, pudera? Posso fazer-te gargalhar na segunda-feira cinzenta que se apropria daquela vestimenta usada. Colocar-te para dançar o tango malandro do cabaré infernal. Ui, nada mal! Tomar-te de jeito, esquivar o teu cortejo ate tocar-te no chão. Quero você comigo no chão. Mas quero tanto, posso eu? Eu não sei, não sei. Mas sei conversar baixinho, suspirar um continho e chegar de mansinho. Sei invadir sua janela, tirar-te da vida. Saia dessa vida! Venha, aqui tem vitrola, versete e carnaval. Tem acalanto, sorriso e vendaval. O tempo sabe fazer o frio. Mas o meu o corpo é quente e te quero tal. Vamos sambar o samba escondido da vida. Aclamar a chama de nós dois. Vem comigo. Arrasta um passinho pela pista que eu aperto-te em meu peito. Vem. Eu não sei muito, confesso que não. Não sei falar assim bonito, nem tão feio não. Mas sei dançar. Mambo, polca e carnaval. Dança comigo, meu bem?

Bernardo Biagioni

quinta-feira, maio 08, 2008

Camping & Rock - Paranóia e Rock and Roll

Lembro de estar subindo uma montanha de lama com uma velocidade anormal. O único barulho que se ouvia vinha dos acordes da guitarra da banda Pink Floyd Reunion que lançava suas últimas lamúrias progressivas no palco. Minha respiração oscilava entre um momento e outro. Eu precisava de trabalhar, o Senhor do Jornalismo seguia clamando por meu nome. Estava frio, tão frio que meu corpo se expressava nas baforadas de fumaça que fugiam pelo canto entreaberto da boca. E eu corria, estou sendo seguido, sei que estou seguido, mas quem vem lá?


Camping & Rock 2008, o Woodstock brasileiro que rola em Minas Gerais, roubou para si quatro dias da minha serenidade mental. Nos dias que antecederam o evento depositei grande parte da minha preocupação no fato de contrair dengue por aquelas regiões. Outros anseios pairavam pelo ar, mas de fato pareciam menos importantes: não beber demais (“Bernardo, você está entrando em ambiente desconhecido”, minha consciência lembrava), não usar drogas pesadas e tomar banhos, pelo menos um por dia.

Mas, como era de se esperar, nos primeiros passos traçados por aquele terreno sagrado, minha consciência ficou perdida no vaso de água parada logo na entrada do camping. “Estou livre”, pensei e me orgulhei de ter despido os meus preceitos mais singelos. E essa parada de tomar banho ficou perdido num imaginário comum das cabeças que circulavam por ali. Não que eu tenho ficado quatro dias sem lavar os meus pecados com a graça que vem do céu, mas o meu único banho foi tão memorável quanto tenebroso.

Haviam me dito que o chuveiro ficava lá em baixo, ao lado do restaurante. Acordei o Raul, um amigo, gritando que uma aranha venenosa estava entrando pela fresta de sua camisa desabotoada. O sujeito levantou dando início a uma dança de “Sai Aranha” que durou alguns minutos. É claro que neste simples ato ele conseguiu demais proezas, tais como derrubar o lampião e transformar a barraca numa zona de “Coloquem fogo em mim, eu imploro”.

Passado o clima ruim provocado pela “puta brincadeira infantil, Bernardo”, perguntei sobre a localização da ducha quente mais próxima. “Eu te levo”, ele resmungou enquanto calçava umas sandalhinhas de Jesus. Eu devia ter imaginado que ele estava me levando para alguma treta, mas a ducha da piscina parecia um lugar razoável para um banho tranqüilo. Fingi que era invisível, fiquei de cuecão e encarei a água gelada enquanto os passantes cruzavam o cenário com olhares curiosos.

Mas a merda da água estava tão fria que minha visão começou a ficar turva. Eu colocava a cabecinha nos fios de líquido que saiam do buraquinho e saia correndo em volta da piscina, à procura de um calor remanescente dos últimos raios de sol. Descolei um sabonete desses de hotel e pintei-me de branco. Nesse maldito momento o chuveiro engasga, faz que “Vai”, mas não vai. Daí fica eu com o olhar perdido no horizonte, de cueca, todo branco e com o sabonete do hotel na mão. O Raul sorria: “Faz a dança do Sai Sabão agora, doidão!”

Quem dera ter água na piscina, sei que você pensou nisso. Tive que me lavar com a compra de 2L de água mineral, com direito a risadas por todo ambiente de trabalho. Mas tudo bem, “Eu sou melhor que isso”, pensei enquanto jogava meu couro cabeludo para trás. Enrolei-me na toalha e segui para nossas instalações porque eu ainda tinha que fazer duas entrevistas naquele dia.

Foi quando eu descobri que tinham invadido a minha barraca...

Mas, meu amigo... Isso é uma ooooooutra história!

Bernardo Biagioni

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Pânico, Suor e Gotas de Álcool

Às 5 horas da madrugada já estávamos suficientemente bêbados para aceitar qualquer proposta, mesmo que fosse o convite de um amigo chapado, 48 horas sem dormir e recém corneado pela amada namorada: “Ei, que tal um rolé no jipe sobrevivente da segunda guerra mundial do meu pai?” Não houve tempo para anseios ou hesitações. Embarcamos no brinquedinho extasiados com a idéia de percorrer os tempos áureos de uma revolução sangrenta que dominou todo o mundo pela década de 40. Neal, o amigo motorista, subiu na máquina com tamanha dificuldade que assustou as duas princesas que se ajeitavam no banco inteiriço da frente. O sujeito tinha um cigarro preso aos lábios de tal maneira que podia arriscar um salto mortal para trás seguidas vezes que ele permaneceria intacto. Apoiei-me na roda para subir na parte traseira do jipe, e ali dividiria espaço com uma espécie de japonês maluco que eu havia conhecido a segundos. O ronco do motor assustou uma série de andorinhas que bebericavam uma poça de água em algum canto da casa, e olhos mais atentos poderiam ter avistado uma série de avestruzes cruzando o horizonte em busca de um terreno mais ameno. Uma montanha de cascalhos se ostentava logo a frente do nosso caminho. Os primeiros raios de sol rasgavam o horizonte dando uma impressão macabra para a natureza mergulhada no orvalho matutino. Neal engatou a primeira marcha e virou o rosto para trás lançando um olhar que poderia dizer ‘pânico’, não fosse pela minha indiferença e dificuldade em discernir ate mesmo um cachorro de um passarinho. A máquina saiu engasgando adiante, oscilando entre morrer e viver, o cano de descarga lançava lamúrias no tempo recém-acordado da paisagem mineira. Em segundos Neal já estava se arrastando para a quarta marcha, olhares aterrorizantes eram entrecruzados em cada espaço do veículo. Mas antes que a viagem se rendesse ao pacato, é claro, tivemos que saborear o prazer de entrar em contato com o lado B da vida, ou melhor dizendo, apertar uns comprimentos com a morte. Era um morro cabuloso que se erguia tampando todo o caminho seguinte. Era preciso primeira marcha: “Aqui é tranqüilo, você só não pode parar, sempre adiante”, dizia Neal com um olhar tão tranqüilo que me causou pânico. No meio da subida o carro parou, o motorista sequelado começou a acelerar com tamanha violência que a máquina perdeu completamente o controle. No meio da confusão Neal conseguiu acionar as quatro setas, o limpador de pára-brisas dianteiro e disparar água pelas laterais do jipe, mecanismo até então desconhecido por toda família. O carro seguiu troteando pela esquerda e pela direita, Neal brigava com o volante e pela primeira vez mostrava sinais de que estávamos em problemas. Um poste ia se aproximando cada vez mais da nossa lateral direita e uma das princesas disparou um apelo em meio a um grito que poderia ser escutado a quarteirões: “Pelo amor de Deus, não bate esse carro”. Neal apertou uma série de botões que estava no painel, fincou o pé no freio e em outros pedais que apareciam a todo momento por de baixo do volante. Por fim o carro parou a exatos dois centímetros do poste, a gritaria e o pânico dos tripulantes se perderam no ar num eco jamais praticado por aquelas bandas. Neal suspirou, voltou a acender o cigarro que apagara em algum momento daquela confusão e lançou umas palavras num tom de quem diz que vai pegar uns chicletes no bolso: “Merda, preciso da chave desse carro pra ligar ele de novo, caso contrário esse freio que estou segurando vai ceder em instantes, e vamos cair direto por aquele barranco ali.” Olhei para trás e vi o barranquinho que iríamos encarar. É bacana a visão que se tem da cidade de Belo Horizonte quando se está àquela altura.


Bernardo Biagioni

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

Fudeção Bebop

Os versos vieram tropeçados, balbuciados pelo contratempo temeroso de um solo de jazz construído nos mínimos detalhes de uma melodia sinfônica. Correram o ar ferindo o timbre nada-tímido do piano que seguia transformando a canção. Ela fitou-me os olhos, arrastou o sapatinho pequenininho pelo assoalho sujo e veio rodando a saia rodada no tempo seco. Tive medo, saí me despejando para a lateral enquanto ela sorria os passos pela madeira surrada, deixava-se debater pela porta da sala entreaberta e escorria o corpo pela parede até tocar o dorso no chão. O sax brigava com a tranqüilidade do tempo, nada de voz, gritos, sussurros ou gritinhos. O bebop continuava estalando o ar, a freqüência ininterrupta dos acordes consumindo cada pedacinho do quarto apagado pela malevolência dos dias. Dei-me por vencido e cai sobre seus pés implorando uma única miserável dança. Aceitando ou não ela ergueu-me sobre seus seios, cravou seus braços pelas minhas costas e me colou junto ao teu corpo de uma maneira desleal. Olhei para os lados, procurei por ajuda, mas o relógio de ponteiros pendurado na parede anunciava que já era tarde demais. Jogou-me na cama, pulou por cima, segurou pelo lado e sussurrou junto com o contra-baixo que palpitava pelas caixas de som: “Se fudeu”. Não, não, errou. Quem terminou fudido não fui eu.


Bernardo Biagioni

quinta-feira, janeiro 24, 2008

Trincando na Lâmpada da Heineken – Primeiro Eu, Você é o Próximo!

Estranho pra caralho. Atravessava o trilho do trem enquanto corria os olhos para onde a linha da maquinaria se perdia, um horizonte inacabado típico de sertão mineiro. Suava feito um gordo maltratado por horas ininterruptas de futebol dominical. Desviei minha atenção para o pedaço de cogumelo que tentava não tropeçar e acabei dando de cabeça no que parecia ser um vestígio de armadura de idade média. Só então percebi que Keurack me olhava, tinha sangue nos olhos como se houvesse sido baleado a segundos por uma Mágnum 157 ou uma arma potencialmente agressiva. Ele não percebia que sua visão estava turva, seus olhos haviam inchado cerca de 5cm ou mais e dava um aspecto aterrorizante: “Um inseto me mordeu”, por fim ele disse. Mais tarde ele descobriria que era algum tipo de réptil em extinção que lhe causaria problemas sérios, talvez uma possível amputação do órgão visual direito. ‘Tudo bem’ pensei, ‘Foda-se este cara, brincou com uma geração de beatniks e pulou do barco quando a brincadeira pegou fogo’. Mais a diante um ser hermafrodita tentava saltar de uma parede com uma dificuldade incrível. Chegando perto pude ver que era Capote, completamente noiádo, algum tipo de droga psicodélica estava zunindo seus ouvidos. A bicha louca se atracava num poste tentando algum tipo de junção que não poderia se capaz de entender. E eu continuava suando, algum tipo de objeto magnético limitava os valores dos meus movimentos, dando uma força estúpida para a gravidade que me atormentava os passos. Por um segundo um calafrio rompeu pela minha espinha fazendo que eu me curvasse instantaneamente para trás, não havia dúvidas, eu estava sendo seguido. Algum músculo posterior do meu corpo fez com que meus passos fossem acelerados, num sinal claro de que a adrenalina começava a fazer efeito assim mesmo que entrou em contato com a corrente sanguínea. Algum tipo de negro maluco vinha correndo com um instrumento de sopro na mão, na camisa dava para ler uma frase que parecia dizer: “Birth of the Cool”. Não há de ser Miles Davis, este aí já revira no sarcófago como se ainda estivesse sendo consumido por um solo de jazz interminável. ‘Tem que ter algum tipo de saída deste lugar’ pensei enquanto acelerava ainda mais o meu passo. Olhei para trás e percebi que uma multidão de hippies malucos me seguia, os olhares eram de paz, mas um medo desumano percorreu cada milímetro do meu corpo num pedido ensurdecedor: ‘corra, esse bando de maluco vai chupar seu sangue’. Assim que pensei em acionar algum tipo de dispostivo que pudesse me colocar em voô em segundos acabei tropeçando numa garrafa de Heineken 700ml que jazia prostrada no meio de um lamaçal violento. Antes que pudesse retomar o fôlego perdido para a correria depravada fui subitamente sugado pela garrafa, numa cena típica de Aladim e lâmpada mágica. Entrei, sentei e curti. É daqui que eu escrevo. E daqui eu não saio. Welcome Home.


Bernardo Biagioni

quarta-feira, janeiro 16, 2008

Brincando com Gardel

Carlos Gardel arrastou-a para um passo de tango, brincando com o tempo que aguaçava o vidraçal. Ela ergueu-se no ponto, deu de ombros e apresentou-se ao coral. Pois antes de chegar bem perto, fuzilou-o com os olhos, correu os dedos pelos cabelos e fechou o sorriso. Brincou com o vestido rodado, o sapatinho desamarrado e as pulseiras nos pulsos. Arrancou um fino da vitrola, arranhou o disco negro e colocou na faixa seguinte. Carlos cantava, ela se entreolhava no espelho com um suspiro azedo de quem diz: me ajuda! Mas parecia bem, tão bem que sorriu de novo, arrastou-se pelos quatro cantos do quarto recordando a velha canção. E estirou-se na cama, feito uma boneca mal-tratada, uma camiseta mal-lavada pelo destino incerto. Tão logo deitou, tão logo rasgou seus verbos, inúteis trocadilhos perversos que judiavam da poesia. Sorveu do vinho vencido e reclamou do vinagre que passou a lhe consumir a serenidade do estômago. Por fim, deu-se por vencida, levantou decidida e esticou a mão direita: “Garçom, se puder peço que me traga a conta! E vou logo avisando, pode dependurar essa merda de couvert pela ponta, que hoje eu não pago não.”


Bernardo Biagioni

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Tempos Estranhos

Olhe bem em volta meu amigo, os tempos estão estranhos. Esperava o ônibus escondido sob um toldo minúsculo, os pingos de chuva pintavam minha camisa e meu nobre-companheiro-vizinho-de-espera-do-ônibus não cedeu nem mesmo um cantinho no verdadeiro guarda-sol que carregava. Tanto faz, mais tarde ele iria passar por poucas e boas. Corri a mão pelos bolsos para resgatar um pedacinho daquele velho fone de ouvido, peguei-o antes que tocasse o chão colorido por chicletes antigos.

Ao reerguer a cabeça estava trocando olhares com o motorista da linha 747, ele gritava e abanava os braços como se fosse um macaco: “não vai subir não, ô idiota?”. Pelo menos foi o que eu consegui escutar, não hei de saber o que havia dito antes ou depois, o som nos meus ouvidos já estavam altos em demasia. As janelas estavam todas fechadas, olhares mais atentos conseguiria enxergar uma fumaçinha saindo da lateral esquerda do ônibus, um homem esfregando as costas do outro, uma mulher aproveitando a temperatura para espremer uns cravos encravados no orifício auditivo direito.

Para fazes jus ao ambiente “sauna gay” um moleque baixinho cuidando bem mal de seus 12 anos levantou no meio da muvuca: “Boa tarde. Poderia ta matando, seqüestrando ou estuprando as madames. Mas to aqui pra vender pedras de eucalipto. Você pode colocar no seu carro, no seu quarto, no banheiro e vai ficar esse cheirinho bacana!” Um sujeito de sunga levantou bem no fundo do “balaio” e ofereceu seu lance: “É meu! Pago 20 merréis nessa porrinha!” Ninguém entendeu merda nenhuma. O amigo levantou enquanto deslizava as mãos pela face buscando uma pitada de suor para auxiliar na contagem das notas.

A situação se normalizava, algumas janelas eram abertas para evacuar aquele cheiro enjoativo e uns engraçadinhos emparelhavam o carro na velocidade do busão gritando freneticamente: “Eii seu motô me dá uma bola desse eucalipto aí”. E os filha-da-puta riam desesperadamente enquanto dichavavam-enrolavam-e-cochavam o próprio baseado.

Uma freada brusca colou o corpo enrugado de uma senhora de idade no vidro dianteiro da embarcação. Subiu à bordo três malucos com meia-calça na cabeça gritando para qualquer cabeça de todo o quarteirão ouvir: “Todo mundo parado, isso é um assalto”. Vale lembrar que as pessoas não costumam caminhar enquanto fazem uma viagem tranqüila em uma linha de ônibus tradicional. A primeira badalada da arma de fogo do cidadão fantasiado acertou um passarinho que fazia ponto por aquelas bandas e fez com que todo mundo descesse correndo por todos os cantos do balaio. Os três malucos ficaram completamente desordenados com a confusão e não puderam evitar nem mesmo a fuga do motorista e do trocador.

Os filha-da-puta da meia calça descarregaram o tambor da arma enquanto assistiam as últimas almas desaparecerem na esquina. Rodaram a chave na ignição e levaram embora o último carro operacional da linha 747. Tempos estranhos, meu amigos. Tempos muuuito estranhos. Na dúvida, pegue um táxi.

Bernardo Biagioni