Sorveu num ultimo gole o resto de vinho que pendia na taça. Pensou em escutar algo, mas sentia preguiça demais para mexer nos discos na estante. Ligou a vitrola e sentiu-se satisfeito com o jazz triste que ecoou no ar. Deitou na cama assim que os primeiros acordes do piano foram chorados. Fechara os olhos, mas era inútil dormir. Levantou, pegou o casaco pendurado na cadeira e jogou-o sobre o dorso, mergulhou a mão direita no bolso e confirmou que estava com a chave de casa.
Pulou os três sets de escada que o separava da rua, e saiu andando, sem pressa, porem sem lerdeza. Parou no ponto de ônibus ao ver Ela, não sabia seu nome, embora conhecesse seu corpo como ninguém. Poderia distingui-lá em meio a multidões de pessoas, simplesmente olhando para seus pés. É que passara tempo demais decorando o brilho de seus olhos, e resolveu iniciar uma nova fase, percorrendo todo seu corpo como se buscasse filtrá -la para seu pensamento absolto. As costas Dela estavam nuas, sentiu vontade de chegar perto, roçar sua barba mal feita nela, arranhando aquela pele limpa e crua. Usurpava do devaneio intimo de escrever-lhe às costas, e em todo corpo, um poema, dois, ou talvez um romance breve, feito um pavio que queima lentamente. Permaneceu parado, suas pernas costumavam trair seus pensamentos em situações como aquela, gozava do prazer grotesco de ficar admirando-a sem mover seus verbos apaixonados. Nos últimos dias a imagem dela insistia em delimitar suas reflexões, não conseguia cerrar os olhos sem vê-la transitando por sua rua com uma serenidade ímpar. Dividiam o mesmo andar do prédio de três andares da esquina, vez ou outra escutava o Chico Buarque cantar rente a parede de seu quarto, canção vinda dos aposentos dela. Sentia vontade de dizer que também gostava de Chico, e que curtia outros, Caetano, Gil, Milton e toda essa gente da musica brasileira. Mas quando a via nos corredores do prédio, ou nas escadas, contentava-se em abaixar os olhos, e fazer sinal de comprimento com a cabeça.
O ônibus 6107 deu as caras. Ela subiu correndo pela porta da frente. Ele hesitou, rebelou com as sinapses dos neurônios que não se manifestavam, venceu, saiu correndo. Socou a porta e o motorista deixou que entrasse. Entrou com a cabeça erguida, como se fosse pela primeira vez Homem, como se pela primeira vez tivesse certeza de alguma coisa. Sentou do lado dela, disse “oi”, ela respondeu com um sorriso. O ônibus arrancou e eles se foram, não se sabe pra onde, ou quando voltam, mas se foram, na mesma embarcação, no mesmo banco, na mesma vida, e juntos, tão juntos que poderia-se acreditar que faziam parte de um só corpo.
Bernardo Biagioni