terça-feira, março 31, 2009

La Bella

Ah! que saudade tenho do teu corpo. Sentir meus pulsos reverberarem as frações sanguineas que labirintam-se pelas suas fiações carnais. Que falta me faz o teu cheiro. O sabor animalesco do pecado correndo pelo viés do nosso desatento pensamento. Como queria arrepiar-lhe os desejos. Tornar Sua alma diante da sagrada profananidade da Nossa alma. Por sua culpa, oh tão grande culpa, não gozaremos das impurezas profundas deste nobre momento. Dormiremos como dois enquanto poderíamos sorver o tempo de um só. Nunca toquei seu rosto, não vê? O pobre desgosto dos nossos desencontros perpetuaram a ternidade de nossas desavenças. Que vontade tenho de você. Abraçar-te junto aos gotejos de chuva que brincam na parede da janela. Ainda vejo nos meus olhos os teus olhos. Sinto-me como um convidado imperfeito para seu banquete celestial. Que triste, pois. Esqueci o meu límpido convite n'aquele próspero temporal que imaginei para nós dois.


E agora?

Quando te vejo?


Bernardo Biagioni


quarta-feira, março 25, 2009

Neal I.

Ele está parado contra o vento e contempla o horizonte sem sorrir. O cabelo estirado sobre o rosto avermelhado e os olhos atentos aos pequenos destroços envoltos na brisa que vem do mar. Não tem medos e seu último pesadelo fora interrompido sem temor. Mastiga um galho fustigado e tem as mãos sujas escondidas no jeans surrado pela maresia. Ele fica ali parado e está respirando devagar. Suas narinas bem recortadas se dilatam pausadamente para receber o cheiro de Vida que desce timidamente pelas montanhas perdidas na curva da esquina. Ele não sabe, mas eu sinto. Qualquer um vê que Neal está vivo.


Bernardo Biagioni

segunda-feira, março 09, 2009

Homens, álcool e poesia.

Vejo-a de longe, caminhando pelos corredores da vida. Tem o cabelo a pique, como se tivesse deixado a cama a pouco, e suas palavras saem pelo canto da boca com preguiça. Quando anda, parece leviana, se arrasta pelos azulejos gelados do chão como uma puta mal paga, viciada e corroída até os tímpanos pelas últimas doses de vinho tinto sorvidas na madrugada. O cheiro de nicotina corta seu perfume vencido, toma banho duas vezes por dia para esmorecer o THC que se impregna por seus fios de cabelos ruivos. Sua roupa está tão amassada que deve ser a mesma da semana passada – seus trapos estão em farrapos descompassados pela malevolência dos dias, culpa das noites prostituintes dos cabarés que não funcionam mais. Tenta sorrir, mas tem vergonha dos dentes verborrágicos e doentios, sua felicidade está ultrajada e ultrapassada pela sua jovialidade reprimida que se definha len-ta-men-te. Seu coração bate como uma pedra, range no peito como uma má orquestra e produz um fogo que não lhe queima a alma. Não ama mais e esqueceu todo o sabor da paixão, sua última história não foi mais que provisória e assim se conforma, então. E olha para mim como se eu tivesse o dom da cura, quando está por perto se sente segura e não quer me largar. Longe de mim não reprime o riso, parece livre e não liga para nada disso. Eu não me importo até olhar os seus chinelos, duas tiras de borracha recortadas e anexadas a um pedaço de flor. E pelas canelas ainda se nota alguma peripécia, parece um cadarço de cor amarela que envolve sua perna até chegar aos joelhos judiados pelo tempo que esteve ‘andando por aí’. Vejo-a de longe e parece apenas um pedaço de ser humano, funciona vinte e quatro horas por dia como uma expressão póstuma dos sacolejos verdadeiros da vida, um maltrapilho maltratado pelas desavenças do cotidiano. Não pensa mais desde quando descobriu a cola, a droga e o carnaval – Nos últimos dois anos esteve atravessando a rotina do mundo como um nobre vagabundo sem ter onde repousar. Vem se aproximando devagarzinho dançando, para ela todo dia é dia de tango, e tenta me abraçar. Recuso seu abraço com meus braços e reclamo do mau-cheiro – estamos diante do banheiro e as minhas narinas não estão se contorcendo com o cheiro que vem de lá. A culpa toda é dela, que tem essa língua depravante, rígida e seca, feito uma madeira imperfeita lapidada diretamente na encosta de uma árvore deposta. Mas antes de tudo, é uma boa pessoa, chega cedo, não se demora, e logo se esvai pelas entranhas da cidade. Não tem bondade, eu sei, mas a sua única maldade está na repulsa estúpida de não gozar dos prazeres vis do mundo. Em certo ponto ela até se parece bastante comigo. Fica assim sentada na cadeira, dura e muda, cultivando e se alimentando de versos esdrúxulos e inverossímeis de um poeta que não se formou em poesia. Ela sorri quando a noite se pronuncia por entre as colinas, mas a verdade é que ainda não sabe nada sobre homens, álcool e alegria. Sua sabedoria dura tanto quanto o cigarro que fuma, cada trago é uma despedida de sua vida solitária, imunda e desmerecida. Quanta merda bebe essa menina.

Bernardo Biagioni

sexta-feira, março 06, 2009

Calorzinho

Não faz mal. O calor que desce pela atmosfera é tão quente que você tem a ligeira sensação de que pode Tocá-lo. A palma da sua mão escorrega pela testa para conter o suor, mas a água densa se esquiva e se infiltra pelos poros dilatados dos seus dedos. A sensação que fica é de impunidade – Nada que você fizer poderá suprir a vontade desumana do Tempo de arrancar-lhe a serenidade mental. E então você tenta desfazer tudo em um sorriso. Escancara os dentes para driblar as condições climáticas e se engana intimamente de que será capaz de sobreviver. Mas aí vem mais uma rajada de vento pela lateral, a brisa que atravessou e derrubou a Serra avança rapidamente até ganhar cada extremidade do seu corpo. Subitamente sua alma é acometida de um desejo carnal, o cheiro de esperma que vem dos prostíbulos corre pela avenida larga e desafoga entre suas narinas castigadas. Suas genitais respondem aos desejos profanos do mundo, são duas e meia da tarde e você luta contra uma vontade avassaladora de procriar a espécie humana. Mas passa. Uma respiração profunda resguarda sua sobriedade por mais alguns instantes – A porra do sinal de trânsito não quer ficar verde e você quer matar o filha da puta que projetou aquela merda. Agora, então, é a vez do ódio se apoderar dos seus pensamentos. Seus olhos ficam vermelhos e suas mãos começam a tracionarem um movimento majestoso - Você quer dar um soco em alguém. Aí parece que Deus está de sacanagem com você porque, do nada, aparece um guardinha da BHtrans para reger toda a orquestra do Trânsito. Mas você não pode ser preso e toda sua vontade de encaixotar a Autoridade se rende a um sorriso forçado. As lágrimas começam a correr por seu rosto e rolam pelas estrias nojentas que dominaram o seu ventre. O desespero provoca uma alucinação perigosa e sua visão turva passa a enxergar as chamas do Inferno. São quase três horas da tarde e você quer dar um tiro na própria cabeça. Mas não faz mal. Logo essa vontade iminente de dar cabo ao Universo acaba. Você pára e se encara pelo retrovisor e tenta tranquilizar a situação: "Eu amo esse calor". Aliás... Todos nós amamos esTe calor,

Não é?


Bernardo Biagioni