Tudo começa com as mãos no volante, sempre com as mãos no volante. Dá para sentir na ponta dos dedos a potência que existe em algum canto do motor, a vontade que o carro tem de seguir adiante, avante, mesmo que as direções não estejam tão claras, devidamente sinalizadas. Essas são as minhas últimas horas em Cuba, na ilha de Fidel; inclino minha cabeça para fora da janela e sinto o vento do Caribe atrapalhar os meus cabelos, a maresia roendo a lataria já enferrujada da máquina grande e branca que corre trôpega pelos remendos desgastados da estrada. Deus deve ter abençoado este regime, ou a menos este povo – penso – enquanto encaro o sol forte de frente, vejo as árvores sacudindo suscetíveis às brisas que brincam entre os voos dos pássaros, as aves que cortam o céu azul escuro, como uma pintura simples, como um escrito de Hemingway.
Fica para trás Trinidad, Cienfuegos, Collòn, uma vila atrás da outra, uma vida atrás da outra, e em cada uma delas uma dúzia de sorrisos tristes, desesperançosos, perdidos no descompasso de uma fotografia que invento dentro da minha própria cabeça. Perco a conta de quantos rostos vejo na beira da estrada, nas margens das cidades, crianças e velhos de pé acenando, festejando e despedindo, todos eles ondulando distantes pelo parabrisas, pelas janelas laterais e por cada um dos retrovisores. O carro segue tropeçando firme em direção a Havana, não há mais ninguém no caminho senão viajantes solitários, homens que atravessam a ilha dia após dias de carona em carroças, na boleia de caminhões antigos, em carros despedaçados pelas viagens intermináveis que partem de algum ponto do oeste.
Agora na direita está o último bar, o último boteco, e diante da construção de madeira estão três homens conversando em silêncio, observando a vida, contando as vidas que cruzam a paisagem verde distante, as plantações de café que somem no horizonte, o mar por trás das montanhas. Lá dentro dá para ouvir Ibrahim Ferrer cantando pelos alto-falantes enquanto Ruben Gonzáles pincela as notas de um piano de calda pardo, longo, produzido melodias que fazem a senhora encostada no balcão mexer os dedos sobre a mesa de pedra. Se Cuba é uma ditadura, ela não sabe, parece não se importar, contando que a salsa continue impune, sarcástica, apaixonante e perversa, como bem canta Compay Segundo com um charuto grosso preso entre os dedos da mão esquerda.
Mergulho o braço para fora do carro, brinco contra a força do vento, e sinto no canto do corpo, no centro do peito, um sentimento seguro de felicidade. É impossível não ser feliz quando se tem a vida em movimento, os pensamentos entregues às curvas das ruas serpenteadas pela vontade quase profana de ir cada vez mais em frente, para o além, até o infinito. Uma placa indica que o meu destino esta à direita, dali alguns minutos estarei sentado no aeroporto. Penso na minha casa, no fim da viagem, na cor dos mares que encontrei pelo caminho e sinto, no fundo do peito, que Cuba sim é livre - mais livre do que eu. Faço a curva, Havana está a quarenta e seis quilômetros. Falta pouco, muito pouco. Mas eu não quero chegar.
Bernardo Biagioni
Fica para trás Trinidad, Cienfuegos, Collòn, uma vila atrás da outra, uma vida atrás da outra, e em cada uma delas uma dúzia de sorrisos tristes, desesperançosos, perdidos no descompasso de uma fotografia que invento dentro da minha própria cabeça. Perco a conta de quantos rostos vejo na beira da estrada, nas margens das cidades, crianças e velhos de pé acenando, festejando e despedindo, todos eles ondulando distantes pelo parabrisas, pelas janelas laterais e por cada um dos retrovisores. O carro segue tropeçando firme em direção a Havana, não há mais ninguém no caminho senão viajantes solitários, homens que atravessam a ilha dia após dias de carona em carroças, na boleia de caminhões antigos, em carros despedaçados pelas viagens intermináveis que partem de algum ponto do oeste.
Agora na direita está o último bar, o último boteco, e diante da construção de madeira estão três homens conversando em silêncio, observando a vida, contando as vidas que cruzam a paisagem verde distante, as plantações de café que somem no horizonte, o mar por trás das montanhas. Lá dentro dá para ouvir Ibrahim Ferrer cantando pelos alto-falantes enquanto Ruben Gonzáles pincela as notas de um piano de calda pardo, longo, produzido melodias que fazem a senhora encostada no balcão mexer os dedos sobre a mesa de pedra. Se Cuba é uma ditadura, ela não sabe, parece não se importar, contando que a salsa continue impune, sarcástica, apaixonante e perversa, como bem canta Compay Segundo com um charuto grosso preso entre os dedos da mão esquerda.
Mergulho o braço para fora do carro, brinco contra a força do vento, e sinto no canto do corpo, no centro do peito, um sentimento seguro de felicidade. É impossível não ser feliz quando se tem a vida em movimento, os pensamentos entregues às curvas das ruas serpenteadas pela vontade quase profana de ir cada vez mais em frente, para o além, até o infinito. Uma placa indica que o meu destino esta à direita, dali alguns minutos estarei sentado no aeroporto. Penso na minha casa, no fim da viagem, na cor dos mares que encontrei pelo caminho e sinto, no fundo do peito, que Cuba sim é livre - mais livre do que eu. Faço a curva, Havana está a quarenta e seis quilômetros. Falta pouco, muito pouco. Mas eu não quero chegar.
Bernardo Biagioni
2 comentários:
Não me canso de ler seus textos. Sempre me deixa com aquele gostinho de quero mais....
Adoro acompanhar seu blog, também não me canso de ler seus textos.
Queria saber daquela coletânea Tempos Estranhos de música, vc deletou? Queria tanto baixa-las...mas não anotei, pode me passar?
bjs.
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