segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Pânico, Suor e Gotas de Álcool

Às 5 horas da madrugada já estávamos suficientemente bêbados para aceitar qualquer proposta, mesmo que fosse o convite de um amigo chapado, 48 horas sem dormir e recém corneado pela amada namorada: “Ei, que tal um rolé no jipe sobrevivente da segunda guerra mundial do meu pai?” Não houve tempo para anseios ou hesitações. Embarcamos no brinquedinho extasiados com a idéia de percorrer os tempos áureos de uma revolução sangrenta que dominou todo o mundo pela década de 40. Neal, o amigo motorista, subiu na máquina com tamanha dificuldade que assustou as duas princesas que se ajeitavam no banco inteiriço da frente. O sujeito tinha um cigarro preso aos lábios de tal maneira que podia arriscar um salto mortal para trás seguidas vezes que ele permaneceria intacto. Apoiei-me na roda para subir na parte traseira do jipe, e ali dividiria espaço com uma espécie de japonês maluco que eu havia conhecido a segundos. O ronco do motor assustou uma série de andorinhas que bebericavam uma poça de água em algum canto da casa, e olhos mais atentos poderiam ter avistado uma série de avestruzes cruzando o horizonte em busca de um terreno mais ameno. Uma montanha de cascalhos se ostentava logo a frente do nosso caminho. Os primeiros raios de sol rasgavam o horizonte dando uma impressão macabra para a natureza mergulhada no orvalho matutino. Neal engatou a primeira marcha e virou o rosto para trás lançando um olhar que poderia dizer ‘pânico’, não fosse pela minha indiferença e dificuldade em discernir ate mesmo um cachorro de um passarinho. A máquina saiu engasgando adiante, oscilando entre morrer e viver, o cano de descarga lançava lamúrias no tempo recém-acordado da paisagem mineira. Em segundos Neal já estava se arrastando para a quarta marcha, olhares aterrorizantes eram entrecruzados em cada espaço do veículo. Mas antes que a viagem se rendesse ao pacato, é claro, tivemos que saborear o prazer de entrar em contato com o lado B da vida, ou melhor dizendo, apertar uns comprimentos com a morte. Era um morro cabuloso que se erguia tampando todo o caminho seguinte. Era preciso primeira marcha: “Aqui é tranqüilo, você só não pode parar, sempre adiante”, dizia Neal com um olhar tão tranqüilo que me causou pânico. No meio da subida o carro parou, o motorista sequelado começou a acelerar com tamanha violência que a máquina perdeu completamente o controle. No meio da confusão Neal conseguiu acionar as quatro setas, o limpador de pára-brisas dianteiro e disparar água pelas laterais do jipe, mecanismo até então desconhecido por toda família. O carro seguiu troteando pela esquerda e pela direita, Neal brigava com o volante e pela primeira vez mostrava sinais de que estávamos em problemas. Um poste ia se aproximando cada vez mais da nossa lateral direita e uma das princesas disparou um apelo em meio a um grito que poderia ser escutado a quarteirões: “Pelo amor de Deus, não bate esse carro”. Neal apertou uma série de botões que estava no painel, fincou o pé no freio e em outros pedais que apareciam a todo momento por de baixo do volante. Por fim o carro parou a exatos dois centímetros do poste, a gritaria e o pânico dos tripulantes se perderam no ar num eco jamais praticado por aquelas bandas. Neal suspirou, voltou a acender o cigarro que apagara em algum momento daquela confusão e lançou umas palavras num tom de quem diz que vai pegar uns chicletes no bolso: “Merda, preciso da chave desse carro pra ligar ele de novo, caso contrário esse freio que estou segurando vai ceder em instantes, e vamos cair direto por aquele barranco ali.” Olhei para trás e vi o barranquinho que iríamos encarar. É bacana a visão que se tem da cidade de Belo Horizonte quando se está àquela altura.


Bernardo Biagioni

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

Fudeção Bebop

Os versos vieram tropeçados, balbuciados pelo contratempo temeroso de um solo de jazz construído nos mínimos detalhes de uma melodia sinfônica. Correram o ar ferindo o timbre nada-tímido do piano que seguia transformando a canção. Ela fitou-me os olhos, arrastou o sapatinho pequenininho pelo assoalho sujo e veio rodando a saia rodada no tempo seco. Tive medo, saí me despejando para a lateral enquanto ela sorria os passos pela madeira surrada, deixava-se debater pela porta da sala entreaberta e escorria o corpo pela parede até tocar o dorso no chão. O sax brigava com a tranqüilidade do tempo, nada de voz, gritos, sussurros ou gritinhos. O bebop continuava estalando o ar, a freqüência ininterrupta dos acordes consumindo cada pedacinho do quarto apagado pela malevolência dos dias. Dei-me por vencido e cai sobre seus pés implorando uma única miserável dança. Aceitando ou não ela ergueu-me sobre seus seios, cravou seus braços pelas minhas costas e me colou junto ao teu corpo de uma maneira desleal. Olhei para os lados, procurei por ajuda, mas o relógio de ponteiros pendurado na parede anunciava que já era tarde demais. Jogou-me na cama, pulou por cima, segurou pelo lado e sussurrou junto com o contra-baixo que palpitava pelas caixas de som: “Se fudeu”. Não, não, errou. Quem terminou fudido não fui eu.


Bernardo Biagioni