domingo, junho 27, 2010

Sob a lua da Toscana

Buona Notte, M.

Não te escrevo de Roma - conforme prometido - mas pelo menos o vento que entra pela janela aberta agora ainda tem cheiro de pizza, de massa, de algum vinho tinto que acabou de perder uma rolha em uma mesa de bar. É bonito isso. Florença parece respirar alguma coisa que não é normal na América, uma liberdade desmedida, uma vontade desajeitada de querer amar mais do que pode, mais do que caberia por dentro dos muros que separam o Centro Histórico da parte nova da cidade, um lado que nem vale a pena sair para conhecer. São quase uma hora da manhã por aqui - no Brasil o céu deve ter escurecido ha pouco - e até algumas horas eu mesmo podia ver dois filetes de sol colorindo a parede do quarto do lado da mesa de madeira. Desde que cheguei na Itália não tenho feito outra coisa senão escrever, escrever e escrever.

Pensei em você quando estava saindo de Belo Horizonte, no aeroporto, no avião, na escala em Lisboa, na partida para Roma. Nem sei dizer a razão. Não sei quantas vezes te vi em toda a minha vida, todas elas em um único dia - uma? duas? três? - mas, sinceramente, pouco me importa. Ainda consigo enxergar com clareza cada um dos seus olhares, a forma como você passa os cabelos por trás das orelhas, o jeito de sorrir um sorriso um tanto contido, reservado, dissimulado por entre todas as simulações de que é feito o mundo. Posso dizer que me apaixonei por você em algum segundo deste nosso encontro - ou desencontro - quando senti os nossos rostos se cruzando de longe, entre o ir e vir de dezenas de corpos perdidos em alguma tarde fria deste último outono. Senti em você um mistério. Um segredo. E gostei disso.

Hoje, cruzando a Ponte Vecchio de bicicleta sob os primeiros raios de sol do verão, imaginei como seria ter você aqui comigo, mesmo que fosse por trinta, quarenta minutos, sentada no guidom toda sem jeito, gritando para os turistas do caminho se afastarem para a gente poder passar. Eu poderia te levar no Parco delle Cascino, onde os galhos das acácias mergulham floridos sobre o filete de estrada que desaparece em um mar de grama verde clara, limpa, infinita até onde se consegue enxergar. E então a gente conversaria deitados na grama, soprando as pétalas dos dentes de leão que estivessem ao alcance dos nossos dedos, com os nossos sorrisos escondidos sob a melhor sombra de todo o campo, de todo o parque, de toda a Toscana.

Florença não me faz sentir saudade de casa, mas me faz sentir a falta de alguma coisa que eu nunca tive. É irreparável a vontade de largar tudo e vir morar aqui, se juntar a todos estes outros viajantes que circulam de esquina em esquina em busca de trabalho, drogas, pincéis, filmes fotográficos e cadernos de anotações baratos, onde possam rabiscar um pouco da angústia que lhes atormenta a serenidade da alma. São todos felizes. Mas eles sabem que são capazes de mais. Muito mais.

Tenho que morar na Italia - não dá para esconder. Você também, eu acho. Percebo isso quando o disco do Radiohead chega na oitava faixa, House of cards, que ecoa pelo quarteirão de uma maneira suave, alta, as notas fogem pela janela envoltas nas folhas das árvores que dançam no vento quente. Está de madrugrada, e ainda assim o vizinho do prédio ao lado faz um aceno com a cabeça como quem diz: "É isso aí, meu velho. E isso aí...". Devolvo o comprimento, caminho até a vitrola, e volto a música para o começo. A lua está lá no alto, incompleta, quase sorrindo. Parece até que ela sabe que Florença está em uma das curvas do nosso destino.


Bernardo Biagioni

quinta-feira, junho 17, 2010

Como amam os pássaros

Levantou os olhos e o sol já estava lá, impune. Olha – ele falou – esticando os dedos para tocar nos fiapos de luz que desciam meticulosos pelos traços adormecidos dela, que estava deitada ao seu lado com os pensamentos cerrados, longe de acordar. Sentiu um desejo doce de beijá-la, mas conteve-se quando percebeu que poderia despertar alguns daqueles sonhos encantadores que dançavam invisíveis por sobre seus cabelos embaraçados.

Levantou agora sobre as suas próprias pernas e se pôs a andar em direção ao astro, relutante contra a violentude dos raios que lhe incomodava as pálpebras recém-despertadas. De quando em vez se virava para trás para ver ela, e para ver a sua sombra, a sua silhueta que dançava involuntária pelo chão colorido de amarelo claro, como são os girassóis.

Levantou os braços para o oeste e sentiu a insustentável leveza do ser invadir cada extremidade do seu corpo, da sua alma estirada às nuvens que se dissipavam compassadas no céu azul. Felicidade – sentiu, e sorriu logo em seguida, sem mesmo perceber que continuava andando, caminhando, arrastando os passos pelo assoalho como passeiam os passos de tango. Fechou enfim os olhos, garantindo antes uma última olhadela para o vento, para o tempo, e para ela.

Mandou um beijo, não despediu.
E então começou a voar.


Bernardo Biagioni

quarta-feira, junho 16, 2010

Todas as noites existem razões para fugir

Nunca entendi essa de ser feliz. Nunca entendi essa de querer Ser - você já não É? Nunca entendi nem essa vontade de querer entender. Nunca entendi por que é que dizem nunca. Não entendo essa vontade de querer explicar. Nem mesmo toda essa vontade de chegar. Isso, chegar... Eu nunca entendo essa vontade toda de sair do lugar. Você quer chegar aonde, rapaz?

Eu não sei.
Mas será que já podemos ir?

terça-feira, junho 15, 2010

Quero te contar sobre a garota que eu amo

Nos apaixonamos pela primeira vez em um bar, no meio da cidade, no brilho dos seus olhos por cima das duas garrafas de cerveja vazias em cima da mesa eu percebi que tudo dali para frente não seria nada momentâneo, nada passageiro. Trocamos não mais que duas ou três frases – ou talvez um pouco menos - todas as nossas palavras eram rapidamente sucumbidas pelo barulho dos pratos da bateria que oscilava descompassada nas baquetas firmes nas mãos do sujeito negro escondido no fundo do palco, ele sempre sorria cinco segundos antes da música finalmente se libertar da alma do homem barbado que cantava todo o tempo de olhos fechados. Toda vez que eles sorriam a gente se entreolhava, se gostava escondido, era sempre como se tivéssemos nos desprendendo do mundo real das coisas, das vidas que vivemos até então, ela em sonhos, eu em sonhos desmedidos.

Antes da música terminar eu a puxei para perto, caminhos juntos para o fundo do bar e encostados em uma parede escura nos beijamos uma, quatro, oito vezes, até os nossos lábios adormeceram na felicidade profunda que corria impune pelas curvas sinceras desenhadas nos nossos rostos. “Vamos embora”, eu disse, ou ela disse, e agora seguimos de braços dados até a porta, até a saída, onde o universo inteiro nos esperava para mostrar que os nossos olhos estavam acometidos de Vida, de liberdade descabida, irreparavelmente prontos para enxergar tudo de forma diferente, como nunca fora realmente. Mergulhamos então na madrugada, nas nossas almas apaixonadas, e seguimos cantando até o meu carro – ou o seu carro – prontos para ir para qualquer lugar. Exatamente como sugeria aquela música que ouvimos em silêncio no bar.


Bernardo Biagioni
Led Zeppelin - Hey, hey, what can I do

segunda-feira, junho 07, 2010

Nós só precisamos viajar

Esta foi uma uma Viagem sem destino, isso eu posso garantir. Não sentimos outra coisa senão a liberdade da nossa Alma quando colocamos os braços para fora do carro e escutamos no silêncio do tempo tudo aquilo que o vento tinha para nos dizer, a brisa, a alegria que existe inebriada na vida despida pelo calor incessante das estrelas que fibrilam no Teto da estrada. No banco do passageiro estava um sorriso mais largo do que o meu; não havia nada ali além da felicidade plena, das entranhas da percepção escancaradas e prontas para enxergar a magnitude e a infinitude que é o Mundo, os Versos, os Universos. Vamos juntos – eu disse, enfim – olhando nos seus olhos, no fundo dos seus pensamentos desencontrados que ondulavam trôpegos e certeiros pelos Bosques mais distantes de cada uma das nossas desventuras até então reprimidas pela Razão humana.

Não tentei puxar o cinto porque pensei que seria contundente seguir adiante, mais adiante, dobrar todas as esquinas e acabar com todas as ruínas que permaneciam inabaláveis nos descompassos do meu peito, onde não devem existir preceitos nenhum para Amar, para se mergulhar no Mar. Nós vamos continuar – pensei - e senti que seria capaz de deslizar os meus dedos pelos contornos das montanhas perdidas no Sul, remodelar os desenhos apagados da estrada, reacender cada uma das estrelas que anoiteceram esta noite ofuscadas pela luz da lua que brilha impune sobre o fim do céu azul.

Não temos para onde ir e nunca vamos chegar. Nunca. Importa apenas que estamos indo, seguindo, bravamente resistindo contra a calmaria da infelicidade, dos amores que se amam sem vontade. Pisei um pouco mais fundo no acelerador e vi pelo retrovisor todos os nossos medos deslizando envoltos na escuridão desesperada do passado, dos tempos passados, dos dias estranhos que acordamos com o coração insistindo em deixar tudo para trás. Nós só precisamos viajar – falei, por fim, dessa vez só para mim – e repeti uma vez, duas vezes, três vezes, até parecer que estava cantando, rimando, ensinando ao meu peito como é que se ama, como é que se vive. É só viajando que o homem pode ser livre.

Bernardo Biagioni
Alexi Murdoch - All my days

quinta-feira, junho 03, 2010

Da última estrada de Cuba

Tudo começa com as mãos no volante, sempre com as mãos no volante. Dá para sentir na ponta dos dedos a potência que existe em algum canto do motor, a vontade que o carro tem de seguir adiante, avante, mesmo que as direções não estejam tão claras, devidamente sinalizadas. Essas são as minhas últimas horas em Cuba, na ilha de Fidel; inclino minha cabeça para fora da janela e sinto o vento do Caribe atrapalhar os meus cabelos, a maresia roendo a lataria já enferrujada da máquina grande e branca que corre trôpega pelos remendos desgastados da estrada. Deus deve ter abençoado este regime, ou a menos este povo – penso – enquanto encaro o sol forte de frente, vejo as árvores sacudindo suscetíveis às brisas que brincam entre os voos dos pássaros, as aves que cortam o céu azul escuro, como uma pintura simples, como um escrito de Hemingway.

Fica para trás Trinidad, Cienfuegos, Collòn, uma vila atrás da outra, uma vida atrás da outra, e em cada uma delas uma dúzia de sorrisos tristes, desesperançosos, perdidos no descompasso de uma fotografia que invento dentro da minha própria cabeça. Perco a conta de quantos rostos vejo na beira da estrada, nas margens das cidades, crianças e velhos de pé acenando, festejando e despedindo, todos eles ondulando distantes pelo parabrisas, pelas janelas laterais e por cada um dos retrovisores. O carro segue tropeçando firme em direção a Havana, não há mais ninguém no caminho senão viajantes solitários, homens que atravessam a ilha dia após dias de carona em carroças, na boleia de caminhões antigos, em carros despedaçados pelas viagens intermináveis que partem de algum ponto do oeste.

Agora na direita está o último bar, o último boteco, e diante da construção de madeira estão três homens conversando em silêncio, observando a vida, contando as vidas que cruzam a paisagem verde distante, as plantações de café que somem no horizonte, o mar por trás das montanhas. Lá dentro dá para ouvir Ibrahim Ferrer cantando pelos alto-falantes enquanto Ruben Gonzáles pincela as notas de um piano de calda pardo, longo, produzido melodias que fazem a senhora encostada no balcão mexer os dedos sobre a mesa de pedra. Se Cuba é uma ditadura, ela não sabe, parece não se importar, contando que a salsa continue impune, sarcástica, apaixonante e perversa, como bem canta Compay Segundo com um charuto grosso preso entre os dedos da mão esquerda.

Mergulho o braço para fora do carro, brinco contra a força do vento, e sinto no canto do corpo, no centro do peito, um sentimento seguro de felicidade. É impossível não ser feliz quando se tem a vida em movimento, os pensamentos entregues às curvas das ruas serpenteadas pela vontade quase profana de ir cada vez mais em frente, para o além, até o infinito. Uma placa indica que o meu destino esta à direita, dali alguns minutos estarei sentado no aeroporto. Penso na minha casa, no fim da viagem, na cor dos mares que encontrei pelo caminho e sinto, no fundo do peito, que Cuba sim é livre - mais livre do que eu. Faço a curva, Havana está a quarenta e seis quilômetros. Falta pouco, muito pouco. Mas eu não quero chegar.


Bernardo Biagioni