Buona Notte, M.
Não te escrevo de Roma - conforme prometido - mas pelo menos o vento que entra pela janela aberta agora ainda tem cheiro de pizza, de massa, de algum vinho tinto que acabou de perder uma rolha em uma mesa de bar. É bonito isso. Florença parece respirar alguma coisa que não é normal na América, uma liberdade desmedida, uma vontade desajeitada de querer amar mais do que pode, mais do que caberia por dentro dos muros que separam o Centro Histórico da parte nova da cidade, um lado que nem vale a pena sair para conhecer. São quase uma hora da manhã por aqui - no Brasil o céu deve ter escurecido ha pouco - e até algumas horas eu mesmo podia ver dois filetes de sol colorindo a parede do quarto do lado da mesa de madeira. Desde que cheguei na Itália não tenho feito outra coisa senão escrever, escrever e escrever.
Pensei em você quando estava saindo de Belo Horizonte, no aeroporto, no avião, na escala em Lisboa, na partida para Roma. Nem sei dizer a razão. Não sei quantas vezes te vi em toda a minha vida, todas elas em um único dia - uma? duas? três? - mas, sinceramente, pouco me importa. Ainda consigo enxergar com clareza cada um dos seus olhares, a forma como você passa os cabelos por trás das orelhas, o jeito de sorrir um sorriso um tanto contido, reservado, dissimulado por entre todas as simulações de que é feito o mundo. Posso dizer que me apaixonei por você em algum segundo deste nosso encontro - ou desencontro - quando senti os nossos rostos se cruzando de longe, entre o ir e vir de dezenas de corpos perdidos em alguma tarde fria deste último outono. Senti em você um mistério. Um segredo. E gostei disso.
Hoje, cruzando a Ponte Vecchio de bicicleta sob os primeiros raios de sol do verão, imaginei como seria ter você aqui comigo, mesmo que fosse por trinta, quarenta minutos, sentada no guidom toda sem jeito, gritando para os turistas do caminho se afastarem para a gente poder passar. Eu poderia te levar no Parco delle Cascino, onde os galhos das acácias mergulham floridos sobre o filete de estrada que desaparece em um mar de grama verde clara, limpa, infinita até onde se consegue enxergar. E então a gente conversaria deitados na grama, soprando as pétalas dos dentes de leão que estivessem ao alcance dos nossos dedos, com os nossos sorrisos escondidos sob a melhor sombra de todo o campo, de todo o parque, de toda a Toscana.
Florença não me faz sentir saudade de casa, mas me faz sentir a falta de alguma coisa que eu nunca tive. É irreparável a vontade de largar tudo e vir morar aqui, se juntar a todos estes outros viajantes que circulam de esquina em esquina em busca de trabalho, drogas, pincéis, filmes fotográficos e cadernos de anotações baratos, onde possam rabiscar um pouco da angústia que lhes atormenta a serenidade da alma. São todos felizes. Mas eles sabem que são capazes de mais. Muito mais.
Tenho que morar na Italia - não dá para esconder. Você também, eu acho. Percebo isso quando o disco do Radiohead chega na oitava faixa, House of cards, que ecoa pelo quarteirão de uma maneira suave, alta, as notas fogem pela janela envoltas nas folhas das árvores que dançam no vento quente. Está de madrugrada, e ainda assim o vizinho do prédio ao lado faz um aceno com a cabeça como quem diz: "É isso aí, meu velho. E isso aí...". Devolvo o comprimento, caminho até a vitrola, e volto a música para o começo. A lua está lá no alto, incompleta, quase sorrindo. Parece até que ela sabe que Florença está em uma das curvas do nosso destino.
Bernardo Biagioni
Não te escrevo de Roma - conforme prometido - mas pelo menos o vento que entra pela janela aberta agora ainda tem cheiro de pizza, de massa, de algum vinho tinto que acabou de perder uma rolha em uma mesa de bar. É bonito isso. Florença parece respirar alguma coisa que não é normal na América, uma liberdade desmedida, uma vontade desajeitada de querer amar mais do que pode, mais do que caberia por dentro dos muros que separam o Centro Histórico da parte nova da cidade, um lado que nem vale a pena sair para conhecer. São quase uma hora da manhã por aqui - no Brasil o céu deve ter escurecido ha pouco - e até algumas horas eu mesmo podia ver dois filetes de sol colorindo a parede do quarto do lado da mesa de madeira. Desde que cheguei na Itália não tenho feito outra coisa senão escrever, escrever e escrever.
Pensei em você quando estava saindo de Belo Horizonte, no aeroporto, no avião, na escala em Lisboa, na partida para Roma. Nem sei dizer a razão. Não sei quantas vezes te vi em toda a minha vida, todas elas em um único dia - uma? duas? três? - mas, sinceramente, pouco me importa. Ainda consigo enxergar com clareza cada um dos seus olhares, a forma como você passa os cabelos por trás das orelhas, o jeito de sorrir um sorriso um tanto contido, reservado, dissimulado por entre todas as simulações de que é feito o mundo. Posso dizer que me apaixonei por você em algum segundo deste nosso encontro - ou desencontro - quando senti os nossos rostos se cruzando de longe, entre o ir e vir de dezenas de corpos perdidos em alguma tarde fria deste último outono. Senti em você um mistério. Um segredo. E gostei disso.
Hoje, cruzando a Ponte Vecchio de bicicleta sob os primeiros raios de sol do verão, imaginei como seria ter você aqui comigo, mesmo que fosse por trinta, quarenta minutos, sentada no guidom toda sem jeito, gritando para os turistas do caminho se afastarem para a gente poder passar. Eu poderia te levar no Parco delle Cascino, onde os galhos das acácias mergulham floridos sobre o filete de estrada que desaparece em um mar de grama verde clara, limpa, infinita até onde se consegue enxergar. E então a gente conversaria deitados na grama, soprando as pétalas dos dentes de leão que estivessem ao alcance dos nossos dedos, com os nossos sorrisos escondidos sob a melhor sombra de todo o campo, de todo o parque, de toda a Toscana.
Florença não me faz sentir saudade de casa, mas me faz sentir a falta de alguma coisa que eu nunca tive. É irreparável a vontade de largar tudo e vir morar aqui, se juntar a todos estes outros viajantes que circulam de esquina em esquina em busca de trabalho, drogas, pincéis, filmes fotográficos e cadernos de anotações baratos, onde possam rabiscar um pouco da angústia que lhes atormenta a serenidade da alma. São todos felizes. Mas eles sabem que são capazes de mais. Muito mais.
Tenho que morar na Italia - não dá para esconder. Você também, eu acho. Percebo isso quando o disco do Radiohead chega na oitava faixa, House of cards, que ecoa pelo quarteirão de uma maneira suave, alta, as notas fogem pela janela envoltas nas folhas das árvores que dançam no vento quente. Está de madrugrada, e ainda assim o vizinho do prédio ao lado faz um aceno com a cabeça como quem diz: "É isso aí, meu velho. E isso aí...". Devolvo o comprimento, caminho até a vitrola, e volto a música para o começo. A lua está lá no alto, incompleta, quase sorrindo. Parece até que ela sabe que Florença está em uma das curvas do nosso destino.
Bernardo Biagioni