Cansei do espelho. Está trincado nas laterais, e é pequeno demais para que eu possa enxergar meu corpo inteiro. Tentei me afastar um pouco, buscar um ângulo bacana, mas não adiantou. Bem perto conseguia notar as olheiras no rosto, abaixei a luz, coloquei meu corpo na penumbra que formava no canto da parede, assim ficava bem. Estiquei o papel na mão, completamente amassado, as fibras retorcidas pedindo misericórdia, e as letrinhas desaparecendo no suor dos meus dedos. Repeti a frase escrita para o espelho, devia ser a vigésima vez que tentava, mas os tropeços continuavam. Não sou gago, pelo menos, não era. Arrastei alguns passos pela casa, fazer jus ao sentimento vanglorioso que corria pela minha alma, à ansiedade que consumia o vestígio de cor do meu corpo. Sim, estou branco, o sangue que deveria oxigenar o meu cérebro saiu em fuga para as pernas, como se quisesse dar vida própria à elas, e somente a elas. De novo o espelho, a mesma expressão. O homem que estava ali era bem diferente do meu eu, a palidez, a magreza, e o olhar cansado não faziam parte de mim. Corri meus olhos para o papel, tremia no ar, como se dançasse uma musica de ritmo acelerado. Respirei todo o ar da sala, e algum outro que vinha pela varanda, enchi os pulmões, era agora: “eu...te...te...”. Não consegui, e gritei, gritei tão alto a minha fúria que no segundo anterior uma onda de vergonha desceu corando a minha face. Olhei para aquele pedaço de celulose na minha mão e senti ódio, era tudo culpa dele, miserável! Sem hesitar rasguei-o ao meio, e deixei que caíssem ao chão. No mesmo instante uma brisa forte invadiu pela janela, levantou com força os dois pedaços de papel e a poeira do tapete. Os dois ficaram a bailar no ar, livremente, uma musica tão suave que não sairia tão sensata se fosse transcrita para uma orquestra. Por fim, romperam com a barreira que os separavam no mundo, da liberdade plena, alcançaram o parapeito da varanda e pularam alegres. E eu fiquei ali assistindo, o “Eu te” caminhando para um lado, e o “Amo” dançando para o outro. Suspirei uma coisa qualquer enquanto esperava que eles desaparecessem no horizonte, e depois me perguntei se eles iriam se encontrar de novo, em um lugar qualquer, nos lábios de um amante, ou nas canções de um outro povo.
Bernardo Biagioni