sábado, agosto 28, 2010

Ainda é possível viver mais depois

Esta foi uma daquelas noites que sempre terminávamos arrumando as nossas coisas para dormir na sala, no perrengue, ele estirando o cotonete fino no chão de madeira, e eu procurando um canto confortável no sofá improvisado em uma cama, sem lençóis. Mais uma vez vamos fechar os olhos sorrindo, silenciosos e satisfeitos com o nosso dia, enquanto fomos apenas um carro brilhante correndo pelos arranhões cinzas e amarelos do mundo. Já sinto meu peito apertando forte, em batidas aceleradas, curioso com tudo que descobrimos antes, hoje, ontem. E com uma puta saudade de tudo que vamos viver amanhã.

Bernardo Biagioni

quarta-feira, agosto 25, 2010

Bom inverno

Inventamos pra gente uma casa no meio do inverno, feita toda de pedras, perdida entre árvores secas, altas e sem folhas, pinceladas de branco pelos cristais de neve que mergulham no vento com calma. É lá que nos encontramos quando sentimos saudade, quando nos perdemos dentro de nós mesmos no meio das conversas que arriscamos na rua, com os pensamentos ondulando trôpegos pelas lembranças dos nossos primeiros beijos ontem, neste mundo que existe de verdade. Da janela não conseguimos enxergar muito mais do que um lago, que está sempre refletindo os nossos sorrisos, e uma dúzia de montanhas que vem e vão entre a névoa que corre para o leste, sempre como se estivesse dançando, oscilando, se desconcertando pelas linhas do horizonte.

Lá ela está sempre sentada no chão, encostada na cama, e carrega nas mãos uma taça que nunca se esvazia, mesmo quando precisa abrir outra garrafa. Todas as noites antes de dormir, fica se perguntando sobre os sonhos, sobre as verdades, e sobre as vontades que tem sentido de fugir de si mesma para viver ali, longe de casa, alimentada pela liberdade que sente quando estamos juntos, a menos de dois metros da lareira. Gosta de passear seus dedos pelas minhas costas, começando pelo pescoço, enquanto ouvimos For Emma tocando na vitrola.

Mudamos para lá deve ter um mês, ou talvez um pouco menos, e não temos conversado mais do que com os olhares, com os dedos, nos descobrindo no silêncio da neve que bate na janela fechada da sala. Não dá para saber por quanto tempo que vamos viver assim, perdidos na ilusão, negando as nossas distâncias, os nossos desencontros e os percalços que sobrevivem nas nossas verdades desajeitadas, ainda despreparadas para entender que já estamos preparados para escrever que estamos nos amando. Estamos bem, enfim, por ora acertados com as nossas ansiedades que descompassam cada uma das batidas dos nossos peitos. Pela janela que dá para os fundos, ficamos sonhando com a realidade que dorme mais esta noite nos esperando lá do outro lado do mundo.

Bernardo Biagioni
Bon Iver - For Emma, forever ago

quinta-feira, agosto 12, 2010

Chegou a hora de partir, meu amigo

Meu amigo, a estrada é essa. Experimente jogar os cabelos para fora para sentir que estamos mesmo indo, finalmente indo, seguindo em disparada contra o desespero do vento, escrevendo o nosso destino com as linhas das mãos que sobem e descem entre a tormenta que desce fria lá atrás, lá no começo de tudo, no fim da nossa velha vida de viver pensando quando é que estaríamos vivendo assim, no caminho, em busca de nada senão dos nossos desatinos acometidos de loucura, de sobriedade profunda. Não tem mais volta, não tem mais curvas, não tem mais montanhas, colinas e esquinas que possam espreitar as nossas ânsias satisfeitas que dançam despreocupadas nos nossos devaneios perdidos no futuro, nas chegadas, nas despedidas, nas linhas que escrevemos sem precisar pensar muito, sem precisar imaginar nada.

Parece que agora irreperavelmente conseguimos atravessar a linha, as margens da poesia, e poderemos enfim encontrar Stills, Nash, Crosby e Young, os velhos homens das barbas cultivadas, e acertar a conta com a nossa felicidade que andava um tanto desesperada para poder começar a cantar. Vamos só acelerar, pisar fundo para o fundo do mundo, para a luz que nos espera do outro lado do túnel, as árvores, as tardes sem chuva, só para ver a natureza respirando, os cometas colidindo, os viajantes perdidos suspirando estrelas enquanto esticam o dedo para mais uma carona antes de mais uma cidade, de mais um hotel barato para dormir. Chegou a hora de viver, de ser, de olhar para trás e não se arrepender de não ter vivido, de não ter sido, e de não ter partido.

Chegou a hora de partir, meu amigo. Chegou a hora de partir mais uma vez.

Bernardo Biagioni

Ontem ela fugiu para barcelona

Ela quer morar no mar. Não quer mais que uma casa de madeira, dois quartos pequenos e uma sala com quatro janelas grandes, sem cortina, que é para nunca esquecer que pode fugir para o horizonte toda vez que precisar. Do lado de fora vai ter um tapete sempre cheio de areia, uma rede colorida, estirada entre os dois coqueiros que vai plantar assim que chegar, e uma grade amarela, baixa, pequena, que não tenha medo de receber quem quer que possa aparecer da estrada, das viagens sem chegadas, dos caminhos de partidas.

Ela quer acordar com o sol. Não quer teto no seu quarto, sombras no seu tempo, escuridões desesperadas no realento das manhãs que nascem por trás das montanhas esquecidas nos cantos da ilha. Quer ver as estrelas adormecendo, as nuvens passeando e os pássaros se arrastando entre os vendavais e temporais que sempre avisam que estão chegando. Deitada em sua cama ela quer poder pincelar nos dedos as estrelas que se confundem solitárias na imensidão silenciosa da madrugada.

Ela quer saber amar. Ela quer amar como amam as cartas, as lágrimas de saudade, os bilhetes improvisados nos guardanapos que navegam em garrafas vazias nas profundezas distantes do oceano. Não quer ter dias, semanas, planos, relógios, nomes e datas. Ela quer o tempo, todo o tempo do mundo, que é para conseguir respirar com clareza, com leveza, sem precisar acordar outra vez ofegante no meio do vazio que já foi a vida.

Ela foi ontem. Foi para barcelona.
Não apareceu no trabalho. Nem no bar.
Não disse nada, não deixou nada escrito.
E todo mundo sabe que ela não vai voltar.

terça-feira, agosto 03, 2010

depois das curvas do mar

Começou a escurecer tarde hoje. Duas curvas depois de sair da praia, encontramos uma reta longa, plana, que se perdia no horizonte iluminada pelos últimos raios de sol sobreviventes no céu azul, infinito por cima da cúpula das árvores plantadas de frente para areia, para o oceano. Pedalamos um pouco mais forte até começar uma descida leve, mergulhada por entre dois campos largos de plantações de uvas, uma dúzia de montanhas que subiam e desciam até as curvas mais distantes da Toscana. Senti no rosto o primeiro vento fresco do dia, uma brisa rápida, falha, que trazia envolta na maresia o cheiro do mar, dos barcos de pescaria estirados na areia, dos casebres de madeira e pedra erguidos no acostamento. Aumentei a música, virei meu corpo uma última vez para a água, para a costa da Itália, para os andarilhos que ficavam no caminho, e comecei a descer.

Fechei os olhos,
Eu vi você.

Bernardo Biagioni