terça-feira, agosto 25, 2009

Inverno II

Desde então eu só tenho encontrado chuva. Parece que todo o tempo resolveu lastimar o nosso passado, repartir a nossa distância, os nossos pecados contidos e as nossas incompletas vontades. Me falta faz você naquela rua, naquela música e naquele frio tão forçado para um começo de inverno. Nossos dedos dados, os beijos apaixonados e os sorrisos de quem passava andando, qualquer um poderia notar o que estava acontecendo dentro das nossas cabeças cuidadosamente silenciosas. Era apenas o som das folhas batendo contra as outras folhas, as árvores dançando no escuro e a vida ali voando, voando, voando... Tanto para dizer e tanto silêncio - Como é que isso podia fazer tanto sentido? - Hoje isso é tudo que ainda me pergunto. Folheando os retratos que não tiramos e as madrugadas que não dividimos, agora vejo a chuva brincando no vidro e o reflexo de nós dois indo embora. Partimos em passos certos para os caminhos contrários. Errantes, logo no inverno.

Bernardo Biagioni

segunda-feira, agosto 24, 2009

Sourde

Sempre disse não antes mesmo de pensar que poderia dizer sim. Não escutava as investidas maliciosas do orvalho matinal que se ajeitava nos vidros dos carros estacionados na rua e pensava - apenas pensava - que toda aquela música que tocava na madrugada era sua. Rá, como eu ria disso tudo, andando de um lado para o outro, correndo os dedos pelos ponteiros despontuados do relógio da parede e vendo a noite ser dia, a chuva secando e as nuvens se abrindo. Vivia pela metade - e ainda vive, claro - e hoje eu consigo ver isso nitidamente. Suas vontades eram dormentes, suas súplicas tristes e seus desejos eram tão e tão pequenos quanto a felicidade que parecia ter. Pensava lá na frente, no depois do depois, na curva dos meses, nos encontros arrependidos e nos lábios que se perdiam pelos deslaços do tempo. Não soube viver o presente e acabou se perdendo do nosso futuro. E hoje não escreve mais, não sorri tanto e todos seus incontáveis sonhos estão mais uma vez conversando com seus pensamentos surdos. Completamente surdos.

Bernardo Biagioni

domingo, agosto 23, 2009

Iluminados

E agora eles estão se desafiando, dividindo os mesmos cigarros, as mesmas garfadas, as mesmas coxas sujas e até os versos duvidosos da lastimável profusão sonora que se infiltra pelos poros do carro. Acelerando e freiando, indo e voltando e sempre estancados nos próprios passos incertos e por certo desacomodados. Em silêncio e em poucos sorrisos, se arrastando pelos becos escuros, as matas fechadas, as estradas bloqueadas e pelo céu cautelosamente estrelado. Bêbados de paixão pelos perfumes soturnos da noite, os cabelos que voam, os uivos que não dormem e pelas mentes que nunca bocejam. Vivem agora e nunca o depois, são levianamente loucos pelos barulhos e pelas entranhas da madrugada fria que existe na esquina iluminada. E bebem a solidão, a descrença, a fumaça branca e as lágrimas do vento, sempre envoltos no vento, suspeitos, estáticos e inacreditávelmente Vivos. E é isso, exatamente isso: Eles estão inacreditávelmente e encantadoramente Vivos.

Bernardo Biagioni

Inverno

Mas o que dizer deste silêncio, das lágrimas embotadas no peito e dos sacolejos insensatos da infelicidade desarrumada que vem e vai pelos caminhos da noite? Que solidão estúpida esta de não conseguir me ater, atracar os laços do destino, meus desatinos e tantos e tantos incontáveis empecilhos. Por que não consigo andar de braços dados, dormir com os pensamentos encontrados e você abraçada no melhor dos meus abraços, desafiando e impedindo o frio que existe lá fora? Estou perdido, mais uma vez - e sozinho, até o amanhecer - escrevendo, pontuando, soluçando e indagando para a vida tudo que me desafortuna, enaltece e incomoda: Por que, me diga, não estamos juntos - e eternamente juntos - agora que até o Tempo reconhece ser a Nossa hora?

Bernardo Biagioni

quinta-feira, agosto 13, 2009

Partidas IV

Incondicionalmente prontos. Malas armadas, cartas assinadas e o que tem que ficar ficando, queimando e sumindo no véu de poeira negra que os pneus lançam para trás. Enfim tudo para trás, dançando e ondulando pelos retrovisores e descendo pelo horizonte azul. No carro apenas os amores perdoados, as lembranças do nosso primeiro beijo e todas as nossas futuras músicas, súplicas e inspirações. E mais uma vez pisando fundo, as duas e eternas faixas pela frente e o asfalto sendo engolido pelos tropeços do nosso passado. Apenas juntos, juntos e juntos. Sem destino e sem caminho, acelerando em direção à vida e sem medo de chegar.

terça-feira, agosto 11, 2009

Partidas III

Na terceira cerveja já me olhava diferente, isso posso garantir. Tinha pouco medo, muita vontade e um tanto desconsiderável de insegurança, toda sua velha e pobre cobrança estava começando a se esfarelar em perguntas pouco profundas. "O que você espera?", arriscou, seguindo em um largo gole na quarta ou quinta garrafa da noite. Tirei um cigarro calmamente do bolso, pedi o isqueiro sem olhar em seus olhos e dei um longo trago como se fosse o último trago da minha vida. "Quero ir", respondi, olhando para os meus pés e tragando pausadamente todas as lágrimas do mundo. Eu quero ir para o mundo.

Partidas II

Não é que agora eu tenha me cansado da cidade, dos carros, das luzes ou das praças. Mas é que, de alguma forma, parece que agora eu já conheço o barulho de tudo, sabe? Das manhãs de domingo, dos passos do vizinho quando a novela termina e das portas rangendo por culpa dos ventos fortes que aparecem pela noite. Tudo é tão previsível, triste e opaco. Sinto que preciso mudar, ver novas conversas e escrever cartas de saudade. Preciso colocar o meu carro de volta na estrada e ouvir o doce e insuperável barulho do silêncio.

Partidas I

Encontraram-se por acaso quando ele estava saindo do trabalho na segunda terça-feira de um falso fevereiro. Ele passava pela porta daquela requisitada padaria do bairro e acabou vendo seu carro estacionado colado na esquina. Pegou o retorno na primeira chance, voltou no começo a música que tanto ouvia e parou o carro por perto. Entrou, ela estava saindo, olhou-a nos olhos e sentiu todo seu corpo corando, estremecendo e fibrilando. Ela hesitou, correu os dedos pelos cabelos negros e passeou nos próprios passos esperando que ele finalmente tivesse coragem de dizer tudo que deveria ser dito ali e por hora: "Vamos comigo embora?"

segunda-feira, agosto 10, 2009

Noir

E também sei que jamais esquecerei daquelas noites nem tão frias de um inverno distante, quando tudo que fazíamos era sentar no carro e ficar trocando lembranças com pensamentos enganosamente preocupados. Nossos dedos, beijos e lampejos rodopiando pela fumaça do seu cigarro e todo aquele cheiro afável da liberdade dançando bem na nossa frente. Livres, livres e livres. Era só e disso que sabíamos e sentíamos junto das suas unhas, nossos abraços e do espaço vazio que nos separava. Duas músicas, oito, doze, o tempo parecia finalmente perdido do próprio tempo e seguia tropeçando, acelerando e engasgando por cada uma de suas paradas. Olhos por olhos, lábios nos lábios e uma vontade inflamável de gritar para o mundo aquilo tudo que eu mal seria capaz de sussurrar: sê minha e agora.

Bernardo Biagioni

sexta-feira, agosto 07, 2009

Tragédia

Acorda às seis, sai às sete e chega às oito da noite em casa. Pontualmente. Não falta com a novela, com os novelos, com a comida para os passarinhos da vizinha e com as duas xícaras de água com que alimenta suas plantas - Tem duas orquídeas e uma samambaia robusta e longa. Tão longa que chega até o andar de baixo.

Seu último sorriso foi no almoço de ontem, quando sentiu o rosto se corando por culpa das investidas tímidas e suspeitas de um alguém qualquer. Não sente uma mão deslizando por suas costas desde a última primavera. Sente saudades - embora não confesse - mas a vida parece mais segura agora que controla suas rédeas.

Não é feliz e sabe. Sabe bem que não é feliz. Tem compromissos, horários marcados e até planos para o futuro, mas são todos tão interessantes quanto o rosto que enxerga nos espelhos da vida. Parece mentira, mas tem vinte anos e pouquinho e já parece estar cavando o próprio túmulo. Bebe pouco, come muito e só fode consigo mesma.

Maria, chama. Mas ganha outros nomes pelos caminhos por onde se bandeia. Porém, de norte a sul, de sul a oeste, recebe só e apenas o apelido de Tragédia, assim curto e assim simples. Sente-se sozinha no escuro, mas não se preocupa e não liga. No fundo ela bem sabe que o mundo está cheio de Marias.

Bernardo Biagioni

domingo, agosto 02, 2009

Castaneda

Veja, homem. Seus panos estão se arrastando pelo chão sujo, que tamanha estupidez deixar que seus panos se arrastem pelo chão sujo. Venha, venha, quero te mostrar o Lago que existe atrás da casa, é grande e largo, cabem muitas pessoas como Vocês andaram me pedindo. Aceita algo para beber? Tenho aqui uns whiskys, conhaques e outros tantos potenciais deturpadores mentais que podem ajudar nesse seu processo de expaaandir Tudo. Você expandiu tudo, Carlos? Expandiu tudo? Chegou até o nobre tormento atento do tempo que fere os descompassos do vento e faz você escrever assim, como um novo lunático dos versos seguidamente repetitivos por culpa do Ócio dos dias? Uau! ::::::: diria o Tom Wolfe que esteve serpenteando uma caminhoete pra cima e pra baixo daquelas ladeiras infinitas de La Honda. Mas agora acabou. (As letras agora ficam menores e a música muda). Acabou e aqui estamos, frente a frente, versos com versos e prontos para uma boa conversa. Podemos ir?

Bernardo Biagioni