quarta-feira, dezembro 24, 2008

Testamento Mineiro

São três e meia da madrugada e na minha frente só uma estrada. Ela corre o horizonte até se perder na primeira curva, desaparece nos galhos das árvores que seguem dançando em harmonia com o vento. Não tenho para onde ir, mas não existem mais razões para ficar. As remanescências do meu conservadorismo cristão tentam prender-me pelos pés e descompassar as batidas do pulso. No retrovisor está Belo Horizonte, a cidade que vez ou outra não faz jus à sua alcunha. As luzes dos prédios que vão serpenteando pela minha janela lateral estão dormindo. As pessoas da sala de jantar estão dormindo. Lá na frente vai um último carro, mas a sua velocidade denuncia que está sendo arrastado pela desvontade de continuar. Eu preciso seguir. Preciso me livrar das montanhas, desse minério que descolore a vivacidade do meu corpo. Não dá mais para ser mineiro e continuar me arrastando pelas ruelas estreitas destas madrugadas. Aqui todos estão mais preocupados em ter grandes casas e desfilar com os carros do ano. O cinema dos bons filmes está perdendo público para aquele do grande shopping - se existisse um campeonato para isso, pela primeira vez me orgulharia de me figurar entre os perdedores. E as pessoas não estão lendo. A classe média está gastando seu tempo trabalhando em lojas de roupas, acessórios e artefatos eletrônicos. Os medianos trabalham para se auto-sustentarem em transações comerciais frívolas e egoístas - Ninguém reparou que a pobreza está crescendo. Achei que a salvação estaria no submundo, nos óculos de armação retangular e nos braços que carregam Rimbaud e Machado de Assis. Que nada. Descobri depois que só estavam posando para uma última foto conceito. Este aqui não é mais inteligente que aquele lá - Estão todos competindo pela própria ignorância de viver. Citam poetas, mas nunca fugiram de casa. Citam estradas, mas só cruzaram as fronteiras do estado naquela última viagem para Cabo Frio. Estão todos morrendo lentamente, sem saber. Morrem antes de perceber que têm a chance de viver. Os mineiros estão alimentando a desgraça de viverem cercados, estão presos e engasgados dentro de seus próprios anseios. A linha do trem que ia até o Rio de Janeiro não existe mais. Não é a toa, todo mundo sabe bem. Pois bem. São quase quatro da madrugada e na minha frente só uma estrada. O caminho é longe, mas, pela primeira vez, estou me sentindo confortável. A lua mergulhou atrás das montanhas, há pouco, e não deve voltar por agora. Sigo escutando Muddy Watters e tenho muito pouco com o que me preocupar. Mantenha-se acordado - Te escrevo quando chegar lá.

Bernardo Biagioni

quarta-feira, dezembro 17, 2008

De dentro da Heineken (II)

Já faz algumas semanas que ele chega atrasado. Não sente mais fome, mas continua se alimentando daquela poeira toda: Bukowsky, Ginsberg e Rimbaud. Fica andando com eles pra cima e para baixo, como se fossem amigos, dá pra acreditar? Também tem cheiro de erva. Ele acha que não sei que aqueles incensos na porta do quarto são para disfarçar o cheiro de erva. Aí entra no elevador meio tonto - ele não sabe, mas a vizinha do quinto andar já percebeu. Então dá um segundo trago assim que chega na garagem. "Não tem ninguem por perto", exclama baixinho enquanto tenta fazer o isqueiro funcionar pela terceira vez. Na quarta coloca fogo na mão, mas não sente tanto quanto antes. O carro não está lá. Merda. Tenta lembrar do último estacionamento, "talvez a rua lateral". Uma raiva latente corre por seu corpo até desaparecer num sorriso enigmático. É como se, por um momento, visse glamour naquilo tudo. Então acelera pelos ruas estreitas da cidade grande, as luminárias dos postes correndo pelo retrovisor. Vai serpenteando o carro pelas ruelas com destreza, cortando pelas esquerdas, centros e direitas. Não tem o medo de antes. Nem deve ter de novo. Escuta agora Piaf e tenta parecer francês em todo sinal de trânsito que respeita. Como se o motoboy importasse. Está sempre atrasado, mas nunca tem compromisso. Eu sei que ele tenta ser respeitável. Em alguma hora da madrugada ele volta. Custa acertar a chave na fechadura - isso explica a maçaneta arranhada - e deita no primeiro móvel que o aceitar. Ás vezes encontro-o no chão, sorrindo. É, ele está sempre sorrindo. Então arrasto seu corpo até um colchão velho e coloco um copo d'água bem do seu lado. Ele costuma ter sede nestas madrugadas. Bem, você sabe como é...


Bernardo Biagioni

sexta-feira, dezembro 12, 2008

4:00am

Era alguma baladinha romântica, uma latinidade que só pode ter sido importada de Cuba. Lembro que tinha um saxofone incendiário que corria pelas paredes até explodir no chão. E ela usava um vestido daqueles coloridos que ficava dançando com seu calcanhar, bem devagarzinho. Balançava seu corpo com leveza e calmaria, como se o mundo girasse a seu favor. Eu continuava deitado, encarando-a, sobretudo para resguardar minha pose racional para enquanto não rompesse a madrugada. Por fim, ergui-me sem lamento, tomei seu corpo pelo centro e estiquei até onde pudesse ser esticado. Deu com as costas no assoalho lavado e voltou com força suficiente para me derrubar. Segurei-me na parede e deixei cair o quadro de Gardel. "Incompriensível", devo ter reclamado. Deitei-a logo ao pé da cama e desatei o nó forjado da minha gravata. Um traço gelado de liberdade desceu ríspido pela espinha até arrepiar-me a nuca. Deslizei meus dedos por suas costas até conseguir o mesmo efeito. Cravei as unhas em alguma parte de seu corpo que tremeu. Olhou-me, então, com raiva e avisou: "menino, não esqueça quem eu sou". Reclamou o que eu clamava, vestiu o vestido pelo avesso e voltou a dançar.

Desgraçada.

Bernardo Biagioni

quarta-feira, dezembro 10, 2008

Sonho erótico de uma noite de Verão


Não passavam das quatro horas da madrugada - disso lembro bem. Eu tinha acabado de chegar de Kahuil, um vilarejo perto de Pichilemu, a outra vila onde eu estava hospedado. Trabalhava ali como jornalista, perdido no meio do Chile como um bom entendedor de surf que não sou. Não havia ninguém por perto e meu espanhol vez ou outra se confundia com um italiano ainda mais rudimentar. O pânico descia pelas frestas de suor na testa até romper no peito aberto, nítida expressão dos 32º que assolavam minha serenidade, mesmo durante a noite. O orvalho matinal seguia em seu tormento de lubrificar a janela dos carros estacionados, uma investida inútil que não apagava a chama que consumia toda aquela lataria enferrujada. Uma segunda onda de pânico veio quando ouvi vozes de algum lugar perto do mar. Pensei nas ondas, em sua inescrupulosa força que invade pela noite invisível até morrer na areia. Senti medo do meu destino ser semelhante. Esfreguei os olhos pela décima vez e apertei os passos, atracando os dedos nos chinelos que havia comprado no dia anterior. Foi então que percebi os contornos de um corpo extendido na praia. Era inevitável pensar na morte. Mas ali estava algo em movimento, cabelos loiros se misturavam à areia que era levada pelo vento. Era uma dança constante, desinibida e intensa. A garota estava nua, como fui notando à medida que chegava mais perto. A sua solidão era acompanhada pelo mar que refletia uma imensidão de estrelas, cada qual com suas brincadeiras nas ondas, como algas, sendo guiadas pelo caminhar das águas. Prendi minha respiração e continuei caminhando por entre as folhagens, tentando dosar o espírito voyeur que aflorava do meu corpo. O crepitar dos galhos que eu seguia pisoteando com cuidado fez curvar o rosto da menina. Abaixei. Ela levantou-se sem se vestir e veio andando sem dificuldade na areia fina, até parar a alguns metros de onde eu me escondia. "Pode sair", falou, baixinho, quase num sussurro. Obedeci, mesmo com as pernas visivelmente instáveis. Parei bem à sua frente e silenciei qualquer indício de respiração que pudessem exigir os meus pulmões. Ela me olhou inteiro, sem esquecer nada. A eternidade daquele momento foi interrompida por uma ordem: "Tira!", disse, apontando para a minha calça lavada pela maresia oceânica. Obedeci, pela segunda vez, enquanto fitava seus olhos - eu não conseguia encontrar outro lugar confortável para repousar minha visão. Ela sorriu, talvez o sorriso mais malicioso que este mundo já teve, e correu os dedos pelos cabelos com tranquilidade. Sem falar nada, virou-se lentamente e saiu andando até mergulhar de novo na escuridão. Antes que desaparecesse por completo, porém, chamou-me por um nome que não era meu e sorriu de novo. Olhei para os lados sem receio e sai em disparada. O caminho estava desenhado na areia.

Bernardo Biagioni