quarta-feira, junho 20, 2007

Maria

Atravessei a vida feito uma locomotiva desgovernada, escorrendo tropeçada pelos trilhos já velhos. O lápis na mão, como se estivesse pronto para escrever a melhor historia da minha vida. O vento no rosto, os cabelos caindo sobre os olhos e os ferindo, alfinetando a córnea seca. Sorria, e o esmalte dos meus dentes se desfazia, ia se destituindo, escoando pelas laterais estimulando as enzimas digestivas. Pela janela via o meu passando correndo, uma seleção de imagens que compuseram meu itinerário até então. A trilha sonora sucumbia o tempo frio, era alegre, as moléculas de ar suspensas na atmosfera bailavam em sincronia com os acordes do piano. Arrastei meus pés para o centro do vagão, fechava os olhos e sentia uma gafieira sustentar meu corpo, conduzindo meus passos em movimentos que não seria capaz de refazer. Convidei a linda dama da poltrona da frente para o tango que começava a tocar, ela estendeu a mão enquanto abaixava a cabeça para conter os rosados pintados em sua face. Apertei-a no peito, conduzi seu corpo até a parede oposta, e empurrei seu busto rente ao chão, enquanto colocava minha perna direita sobre as suas. Vi-a sorrir, mas logo voltou com aquele ímpeto no olhar, um mistério do qual ainda procuro menções. Arrisquei um passo novo que acabara me colocando ao chão. Acordei com as têmporas doídas, um amontoado de carinhas me encarando com curiosidade. Não sei se fora tudo uma ilusão desvairada, ou se havia mesmo escutado aquele tango. Mas a locomotiva seguia, e a única melodia era da Maria Fumaça que pela noite gritava se perdendo.


Bernardo Biagioni

quinta-feira, junho 14, 2007

Pintura Desgraçada

Deitou-se lentamente de bruços e me estendeu com a mão direita uma caneta preta. Olhei-a com curiosidade, fitei seus olhos que se dobravam na minha direção. Confirmou em um aceno com a cabeça que eu estava pensando certo, queria que desenhasse em suas costas, deixasse correr a tinta negra sobre sua pele branca macia. Fechei os olhos, abrumei o objeto sobre sua nuca, enquanto ela afastava os cabelos para as laterais. Arrepiou, sua pele explodiu em pontinhos espaçados, visíveis claramente a olho nu. Não sabia se devia continuar, ela olhou, consentiu com os olhos turvos, dilacerados de prazer. Fui deslizando a tinta por sua medula, sentindo cada vértebra, cada pulso de seu corpo se deliciando com o toque. Cheguei até a cintura, e nesse momento, senti um calafrio descer feito um fio terra por seu corpo, morrendo nos dedos dos pés. Sorriu, não que eu tivesse visto, mas o tempo havia sorrido, seu corpo balançou num gemido silencioso, mas barulhento o bastante para acordar os meus devaneios. Ela virou a cabeça para o lado com dificuldade, pediu que eu me aproximasse. Beijou-me a bochecha, o pescoço, sentia sua alma escorrer pelo canto entreaberto da boca, que exalava desejo. Tomou a caneta da minha mão, jogou-a fortemente contra a parede e me empurrou para longe. Ergueu-se, levantando consigo o lençol e os segundos que antecederam o beijo. Meu corpo recuou, cada pedaçinho passou a sentir medo, insegurança e frio. Chegou bem perto, olhou-me por dentro dos olhos, alcançando a retina, e a imagem que se formava antecipadamente me fazendo míope. Atravessou a minha face, colocou sua boca ao lado do meu ouvido e deixou escoar uma frasinha que ainda fere o meu tímpano: aprenda a desenhar.

Feito isso, saiu sorrindo.


Pintura Desgraçada.


Bernardo Biagioni


terça-feira, junho 12, 2007

Adeus!

Estou partindo. As malas estão prontas, o destino é incerto. Carrego comigo um pedaço daquele teu sorriso, dos seus - “bom dia” - tímidos corridos pelo canto da boca. Levo nos meus braços os seus abraços, tão firmes e inseguros, como quem segura um copo cheio de água na mão. Não hei de chorar, sou homem demais para sustentar essa separação como algo natural, que deveria acontecer cedo ou tarde (snif). Tenho as pernas trêmulas, confesso. Meu corpo é arrastado por passos fracos, que atingem o chão com desespero desigual. Não sei se quero ir, mas a vida vai me empurrando, é inútil lançar os remos contra a maré oscilante. Sentirei saudades das nossas trocas de olhares, daqueles segundinhos miseráveis que me levavam de volta a uma infância inocente, digna de um ser normal. Odeio confessar, mas tenho medo, quando deito minha cabeça no travesseiro fico perguntando o que será de nos dois, ou mesmo, o que foi de nós dois? Fomos somente uma troca de olhares, um dúzia de sorrisos? Fomos vitimas de um destino adorável que estancou em nossos peitos a vontade incontrolável de amar e ser amado? Sou uma caixinha de duvidas, lançada pelos quatro cantos do quarto como um brinquedinho descartável. Pois é hora de partir. A noite se anuncia, os pássaros saem à espreita de um refugio seguro. Vou saindo, mergulhando no breu da noite, nadando de braçadas em direção à saudade de nos dois, que já começa a consumir meu corpo nesse exato instante.


Bernardo Biagioni

segunda-feira, junho 04, 2007

Bailarina Desgraçada

Fixou seus olhos brilhosos nos meus e arrastou os pés, num passo de tango até então desconhecido, que acabou por traçar uma ferida no assoalho. Fui de encontro àquele brilho sobrenatural e fui contido pela careta que ela me fez, reprimindo meu avanço. Bateu os pés no chão, sapateava e rodava pelo quarto, fazendo escoar pela casa um barulho seco, vibrante, tão vibrante que se podia notar o ar tremer. Não abaixava os olhos nenhum segundo, havia uma sensualidade impar por trás daquelas pupilas dilatadas, esticadas para alcançar alem do breu na noite. Sentia-a transpirar por trás daquele vestido negro, era feito um suspiro do corpo requintado por uma chama vil, de amor carnal sedento. Não mostrava seus belos dentes, pelo contrário, mesmo com a boca fechada sabia bem que estavam cerrados, como se compusessem parte da concentração destinada aos movimentos oblíquos. Veio devagar em minha direção, percebi com o canto dos olhos que estava sobre os dedos do pé, e se não fosse pela razão, haveria dito que estava flutuando. Chegou bem perto, tão perto que senti sua face baforar uma sílaba incompreensível para meus olhos, e achei que iria me beijar. Riu quando notou que eu havia fechado os olhos, empurrando meus desejos alheios para o escanteio da vida. Puxei-a pelos braços, agarrei-a no meu peito e tentei beijar-lhe o pescoço, mas era inútil. Esquivava feito uma boneca de pano, sem ossos ou limites, deixava o busto cair de costas sobre o chão. Empurrou-me na cama e me pisou no peito, pela penumbra da saia percebi que trajava uma dessas ligas vermelhas, que atiçam a sobriedade do homem. Um calafrio de prazer desceu meu corpo e voltei a agarrá-la, dessa vez ela permitiu que eu a beijasse nos lábios, uma ou duas vezes. Mas diante meu despreparo, esquivou pela tangente e rodopiou o tempo e a certeza que me pendia. Era brincadeira de gato e rato, e eu, no posto do gatuno, corria com a boca aberta, os dentes afiados para atracá-la assim que distraísse. E ela gargalhava da minha inocência, da minha infância reprimida, dos tempos que a assistia bailar pelo buraco da fechadura. E feito um anticlímax desumano, tanto para essa prosa, quanto para minha vida, ela disse que já era hora.


Puxou

_____A

______Porta

__________E

___________Saiu

_______________Dançando.


Bailarina desgraçada.

Bernardo Biagioni


domingo, junho 03, 2007

Obrigado

Foi quando abri os olhos que percebi que abraçava fortemente o violão, a ponto de machucar-lhe o braço. Ele respondeu com um grunhido agudo e melancólico, feito um penitente implorando por misericórdia. Era como se eu quisesse fundi-lo ao meu corpo, estanca-lo em meios aos órgãos frios que delimitam esse meu sistema febril. Larguei-o, e tive medo quando olhei para a mesa e vi que pendia um lápis, tamanho afeto que lhe depositava. A janela chorava gotas de uma chuva densa e fria, que veio se anunciando durante toda a semana, sorrateira. Agradeci que estava cercado de paredes, e uma cama havia sido pintada sob meu dorso, sem que eu percebesse. Mas ao mesmo tempo lancei meus olhos ao chão, fiz menção de silêncio por alguns minutos, lembrando que outros dormiam sobre paralelepípedos sujos dessa velha cidade, e que as mesmas águas que choravam sobre minha janela, escorriam por faces esquecidas em becos escuros. Senti frio, mesmo tendo traçado em minha volta, com tamanha facilidade, um cobertor quentinho. Consiste no meu transtorno obsessivo compulsivo pessoal, de toda vez que se sentir plenamente satisfeito com algo, correr o pensamento para os necessitados. Dobrei-me sobre os joelhos, e num ato franco estendi o antebraço aos céus, senti que por ali poderia descer um daqueles raios que salpicavam lá fora na tempestade. Roguei um verso qualquer, de católico desesperado e ausente do dever semanal de comparecer à casa do senhor Deus. Ergui-me com dificuldade e puxei um papel e um lápis com delicadeza. Não medi as palavras, confesso, e não enderecei meus verbos também. Apenas destrinchei a mensagem vazia de que as pessoas devem amar mais, deixar que os pulsos do peito irrompam pela camiseta novinha da ultima liquidação. Vamos agradecer por esse manto suave que foi estendido sobre os nossos corpos, enquanto em outros mundos há chuva, há frio.

Obrigado.

Bernardo Biagioni


Valsinha

Abrumou a lapiseira aos lábios e a sugou, como se libertasse o devaneio intimo de tragar o grafite. Conteu-se, embora tivesse de fato vontade de alimentar-se daquele material seco, composto de dezenas de carbonos enfileirados. Permitiu que o solo do piano triste invadisse seu corpo e descesse suave pela sua medula espinhal, levemente envergada. Deitou-se, não que quisesse descansar, mas queria deixar penetrar cada sílaba daquela sensação inebriante, de quem se perde de amor por alguém. Sorveu num gole a pinga perdida na gaveta da cozinha, como se quisesse molhar os versos, acalentar a alma já embriagada. Sorriu quando me viu o olhando do outro lado do espelho, deixou as bochechas corarem, desponto de timidez de quem se vê encarado nos olhos. E alegrou-se, não por estar embriagado, ou por ser sexta-feira, mas simplesmente pelo fato de alegrar-se com tamanha facilidade, sem deixar vestígios ou traços de incertezas. Deixou a alma ser ninada enquanto destilava passos pelo quarto, dedicados, sobretudo, ao som do violino que arranhava o tempo cinzento que invadia pela janela entreaberta. Por esses segundos foi livre, fui livre, gozei o desejo desnudo da liberdade plena, e a deixei que compusesse esses meus versos extasiados.

Permitam-me essa dança?!

Bernardo Biagioni