terça-feira, maio 29, 2007

Destino 6107

Sorveu num ultimo gole o resto de vinho que pendia na taça. Pensou em escutar algo, mas sentia preguiça demais para mexer nos discos na estante. Ligou a vitrola e sentiu-se satisfeito com o jazz triste que ecoou no ar. Deitou na cama assim que os primeiros acordes do piano foram chorados. Fechara os olhos, mas era inútil dormir. Levantou, pegou o casaco pendurado na cadeira e jogou-o sobre o dorso, mergulhou a mão direita no bolso e confirmou que estava com a chave de casa.

Pulou os três sets de escada que o separava da rua, e saiu andando, sem pressa, porem sem lerdeza. Parou no ponto de ônibus ao ver Ela, não sabia seu nome, embora conhecesse seu corpo como ninguém. Poderia distingui-lá em meio a multidões de pessoas, simplesmente olhando para seus pés. É que passara tempo demais decorando o brilho de seus olhos, e resolveu iniciar uma nova fase, percorrendo todo seu corpo como se buscasse filtrá -la para seu pensamento absolto. As costas Dela estavam nuas, sentiu vontade de chegar perto, roçar sua barba mal feita nela, arranhando aquela pele limpa e crua. Usurpava do devaneio intimo de escrever-lhe às costas, e em todo corpo, um poema, dois, ou talvez um romance breve, feito um pavio que queima lentamente. Permaneceu parado, suas pernas costumavam trair seus pensamentos em situações como aquela, gozava do prazer grotesco de ficar admirando-a sem mover seus verbos apaixonados. Nos últimos dias a imagem dela insistia em delimitar suas reflexões, não conseguia cerrar os olhos sem vê-la transitando por sua rua com uma serenidade ímpar. Dividiam o mesmo andar do prédio de três andares da esquina, vez ou outra escutava o Chico Buarque cantar rente a parede de seu quarto, canção vinda dos aposentos dela. Sentia vontade de dizer que também gostava de Chico, e que curtia outros, Caetano, Gil, Milton e toda essa gente da musica brasileira. Mas quando a via nos corredores do prédio, ou nas escadas, contentava-se em abaixar os olhos, e fazer sinal de comprimento com a cabeça.

O ônibus 6107 deu as caras. Ela subiu correndo pela porta da frente. Ele hesitou, rebelou com as sinapses dos neurônios que não se manifestavam, venceu, saiu correndo. Socou a porta e o motorista deixou que entrasse. Entrou com a cabeça erguida, como se fosse pela primeira vez Homem, como se pela primeira vez tivesse certeza de alguma coisa. Sentou do lado dela, disse “oi”, ela respondeu com um sorriso. O ônibus arrancou e eles se foram, não se sabe pra onde, ou quando voltam, mas se foram, na mesma embarcação, no mesmo banco, na mesma vida, e juntos, tão juntos que poderia-se acreditar que faziam parte de um só corpo.

Bernardo Biagioni


segunda-feira, maio 21, 2007

A Revolução não será Televisionada

A revolução não será televisionada. As emissoras de televisão hão de manter a mesma programação, se privando do direito de reportar o estopim. Vai ter atores e atrizes nas ruas, passarela ininterrupta do palco do teatro da esquina. Os seresteiros violarão o silêncio, com viola no dorso e palheta na mão. Hão de vir poetas de todas as regiões, motivados pela alforria que se explode na avenida. E vai haver carnaval, no meio desse vendaval hão de comparecer os verdadeiros pandeiros, que cismam em se esconder pelos becos escuros da capital. Virão guerrilheiros, soldados e militares desprovidos de alienação governamental, serão responsáveis pelas barricadas, livros e melodias compondo um muro estrutural. Hão de vir cabeças-chaves de governos de oposição, os quais desejam o massacre do neoliberalismo febril, e a imposição da justiça social. Há de chover confetes, os paralelepípedos hão de urgir de dor por sustentar a multidão que lhe caberá. Serpentinas cobrirão a luz do dia, traçando as cores do arco-íris no céu acinzentado. As paredes serão cobertas por cartazes e adesivos, ficarão por cima dos anúncios das Casas Bahia, ou da Cartomante da Alegria. Nas varandas dos prédios penderão bandeiras verde-amarelas, estiadas no mármore seco, escovadas até o chão. Os carros irão entoar uma sinfonia, feito copa do mundo, todos vangloriando a vitória da seleção. No Congresso não vai haver nada não, exceto euforia, cantoria em homenagem ao soerguimento da Brava Mãe Gentil. Os jornais impressos titularão o carnaval fora de época, mas bastante atrasado nessa era. E vai “haver futebol, choro e muito rock and róll”. A revolução não será assistida, mas será consumada, assim que decidamos atracar a panela aposentada na gaveta da cozinha, e juntarmos no Planalto Central para entoar uma bela melodia.

Vamos Brasil, brincar de fazer canção!


Bernardo Biagioni


domingo, maio 20, 2007

Samba Mulata!

Por brincadeira do destino foi com ele que comentei da saia rodada da menina que passava na rua. Ele sorriu, e num suspiro incessante deixou escorregar a alegria de viver. E abriu a boca para dizer, percebi que fazia mais, era feito entoar uma bela canção, uma voz rouca, rasgada, digna de um verdadeiro trovador. Não percebeu o meu espanto, nem poderia fazê-lo, pois ainda admirava a mulata que rodava o vestidinho como se dançasse um bolero inglês. Era mendigo, feio esse nome, mas assim meu leitor vai entender de quem estou falando. Locutor de rádio não falaria tão bonito, tão suave, e nem seresteiro apaixonado flecharia seu amor com uma melodia tão profunda. O que a mulata tinha para se mostrar, ele tinha escondido, feito um samba improvisado num porão escuro, enquanto pelas ruas escandalizam um carnaval contrabandeado. Agora estou falando de samba, o verdadeiro bamba de quem coloca os dedinhos para cima e deixa os pezinhos bailarem. Estou falando do verdadeiro trio elétrico, aquele que sacode até quem já descansa em jaz. E a mulata ia sem mais rodeios, exalando pelos saltos nos pés a melodia adormecida nos nossos ouvidos. Parecia invocar certa força divina, a maneira como sacudia a bacia fazia o tempo tremer, como se fosse preciso estancar a certeza do relógio de ponteiros. Do lado de cá eu e o mendigo com a voz de locutor, com as mãos nos queixos, segurando os segundos da vida que não poderiam passar. Sorria pra ele, e ele devolvia em dobro, podia ver seus dentes através da barba sedenta que cultivava a meses. Desabou no chão toda minha lucidez quando ainda exclamou: êita vida boa rapaiz! Pois me digam onde eu estava com a cabeça, nos dias em que reclamei nos travesseiros que a vida não andava nada de mais. Peço desculpas, hão de me perdoar - pois por esses momentos só quero tragar a voz do meu novo amigo, e ver aquela morena sacolejar.

Anda mulata, dança!


Bernardo Biagioni


terça-feira, maio 15, 2007

Deixa ela viver mamãe!

Deixe que sua filha saia mamãe. Ela passa no banco traseiro do carro com os olhinhos pregados no vidro, assistindo um mundo acontecendo. Deixe que se junte à roda de samba que cantarolam na esquina da R. Pernambuco, coladinho no boteco do Nei. Deixe que sua filha rompa a fina película de vidro que a separa do futebol que as crianças jogam descalças nas ruas. Deixe-a sorrir o sorriso puro do mulato recém alforriado do emprego estressante. Ela olha as pessoas arrastando os pés sobre o assoalho seco na avenida, fazendo entoar um barulho ressonante que traça uma melodia. Ela quer sentir nos capilares periféricos a essência de viver, sentar em um ponto de ônibus e reclamar com a morena cheirosa que o itinerário da linha 2104 deveria mudar. Quer descer numa esquina antes do portão de casa, que é para passar de porta em porta, perguntando o nome da vizinhança. Ela passa com os olhinhos no vidro mamãe, e preenche sua parte inferior com gotículas de água de sua respiração sedenta. Sente frio, mesmo com o aquecedor ligado, e o termômetro do painel sinalizando os fervorosos 35º - mas é escassez de calor humano mamãe, ela quer aquele abraço apertado que vê sinalizado no semáforo. Quer sentir com o solado nu as pedras colocadas à mão no chão do passeio da loja de brinquedos que ela entra carregada no colo. Sentir-se iluminada pelos postes das avenidas que cismam em falhar quando a noite cai. Sente vontade de deixar correr pelas têmporas o gotejar morno da garoa que desce de mansinho. E sente vontade enorme de vir correndo abraçar o menino que a encara com um lápis pendendo na mão direita, perdido na confusão das pessoas, situado bem no meio da vastidão do mundo.

Deixa-a respirar mamãe. Deixe ela viver!

Bernardo Biagioni


segunda-feira, maio 14, 2007

Fotos 3x4 (Parte II)

Voltando à historia da colecionadora louca de fotografias 3x4. Uma semana se passou, e de forma inversamente proporcional, crescia a minha expectativa por vê-la novamente. Ah, ela se chamava Aline, mas no primeiro dia de aula enquanto comia um churrasquinho no quiosque em frente à escola de francês, disse que eu a chamasse de Nine, e com a boca aberta, deixava à mostra os pedacinhos de carne entre seus dentes. Eis que chegou a tão ansiada quinta-feira, dia de ouvir os Bon Jours e Petit Gateaus de sempre. Cheguei mais cedo que o normal, parei o carro em estacionamento proibido, multa que veio impedir que eu desse um presente de aniversário para minha mãe. Entrei na sala, estava perfumado, uma colônia inglesa que mais fedia do que cheirava, e que me causava irritação no pescoço e nos pulsos. Ainda faltavam trinta minutos para começar a aula, tempo que dediquei a tremer as pernas e a coçar as irritações, que acabaram me dando um aspecto bastante avermelhado. Ela entrou, comia um X-Bacon sem salada que vendia no Trailer do Seu Manuel, do outro lado da Av. do Contorno. Olhou para a professora e resmungou um Bon Jour, acompanhado de um milho podre que saltou de sua boca. Sentou na cadeira quebrada debaixo da janela, como sempre fazia, e sequer teve curiosidade de olhar para onde eu estava, que à essa altura já estava ostentando pedaços de carne-viva na altura do pescoço. Não me perguntem o que foi falado naquela aula, nem sequer lembro das palavras que tive de repetir, que saíam com uma dificuldade anormal. Lembro de ter ouvido somente quando a professora suspirou enquanto apagava o quadro: Ahh, L’amour est tre beau, a frase ecoou nos meus pensamentos e desceu feito um calafrio pelo corpo. Bateu o sinal e Nine foi saindo, e parecia decidida a não lançar nenhum olhar para mim, mesmo que fosse por distração ou semelhante. Pois resgatei o vestígio de coragem que pendia na minha timidez e corri até ela, e a puxei pelo braço esquerdo. Ela virou e pude ver que estava mais feia que o normal, o que me atraiu de uma forma estranha. “Porra Eduardo, já falei que está tudo terminado entre nós”. Terminado? Mas eu ainda estava querendo começar. Ela deu três passou a frente e parou, mas continuou de costas. Corri ate ela e a beijei, talvez o melhor ato de impulso que tenha tomado em toda minha vida, pois naquele momento senti no sangue o porque de ter passado o perfume vagabundo e de ter parado em estacionamento proibido. Ela me empurrou depois do que me pareceu uma eternidade de beijos, e disse, enquanto passava a manga da camisa nos lábios: só tem um jeito de você entrar para minha vida de vez. Falando isso ela deu de costas, cobriu o rosto que corava e disse baixinho, que fiz força para escutar: quero uma foto 3x4 sua! Aquilo me deu um medo, uma sensação esquisita. Uma foto 3x4? Porque não uma com meu cachorro, ou com meu avô fofinho ou uma ordenando os gados da fazenda? Uma foto 3x4 era demais! Foi naquele instante que ela me pediu pela primeira vez uma fotografia 3x4 minha. Só mais tarde que eu fui descobrir que seria parte de uma coleção numerosa, que forraria toda a parede seu de quarto. Foi quando as nossas brigas começaram sabe? Mas, ixi, isso já é ouuutra historia.


Bernardo Biagioni

Poeminha

Não sei meu nome
Do meu sobrenome eu esqueci,
Brinquei a tarde inteira
E pela noite que fui sorrir.

Não sou poeta, ou trovador.
Muito menos me fiz "dotor"
Sou menino, sou criança
Pedacinho da sua lembrança.

Escrevi esse poeminha
Para brincar de fazer rima
Sem pontinho o termino
Que é pra não estancar esse meu mimo

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Parodiando Vinicius:

Que me desculpem as burras, mas inteligência é fundamental.

Bernardo Biagioni

quinta-feira, maio 10, 2007

Fotos 3x4

Só mais tarde que eu fui descobrir que ela colecionava fotos 3x4 das pessoas que conhecia pela vida. E foi justamente esse estranho hábito que marcou o inicio das nossas brigas. Não que eu ficasse nervoso quando olhava para a parede do quarto dela e via uma centena de rostinhos, mas me dava agonia. Aquilo era uma espécie de obsessão, sei lá, mas tudo bem. Conheci-a nas aulas de francês que fazia semanalmente, talvez por ser um pouco mais velha, tinha uma dificuldade incrível de pronunciar as palavras, e toda vez que errava, olhava para mim e sorria. Teve uma vez porem, que ao invés de me lançar aquele sorrisinho idiota, ela virou pra mim e disse num sussurro: estou usando meias novas. É claro que eu indaguei no mesmo instante: heinnn? Ela sorriu daquela mesma maneira, e não sei por que, o sangue subiu-me às têmporas. E quando acabava as aulas ela me chamava para ir a sua casa, que ficava a dois quarteirões dali. Depois de oito meses improvisando desculpas espetaculares do tipo: “nossa, vai um cara hoje lá em casa arrumar a geladeira, não vai dar”, acabei tendo que aceitar o convite. Ela entrou na frente e fechou correndo a porta do seu quarto: “aii está muito bagunçado”, mas eu tenho certeza que era por causa das fotografias 3x4. Era uma casa modesta, paredes brancas e descascando, uma televisão dessas velhas que nem com aquelas antenas de dois metros e meio conseguiria sintonizar a rede globo. Me ofereceu um café, café? Caralho, quem oferece café hoje em dia? Mas tudo bem, não sou do tipo que reprime tradições do passado que, aliás, me parecem bastante peculiares. Aceitei, afinal, também não gosto de fazer do tipo mal educado. E ela veio com a xícara na mão, mas tropeçou na bonequinha Barbie que estava no chão e derramou aquele liquido preto todo na minha camisa. E veio correndo, achei que iria limpar o estrago mas me beijou a boca. Mas que beijo espetacular meeeu Deus. Alguma coisa nela tinha que ser bacana afinal! Beijei-a por minutos e nem liguei que tivesse uma barbie em casa, no meio da sala de estar. E em silêncio ela me levou ate a porta, e num suspiro disse: agora vá. E fui, não falei nada, também nem tinha o que falar. Também nem liguei para as pessoas na rua que olhavam para minha camisa manchada, eu estava sorrindo feito um bobo, sorrindo cara? É, me apaixonei por uma doida que colecionava fotos 3x4 e que tinha uma Barbie no chão da sala, com a qual devia brincar freneticamente. Mas quanto ás fotos eu só fui descobrir depois, foi meio que o início de nossas brigas sabe? Mas isso já é outra historia.


Bernardo Biagioni

domingo, maio 06, 2007

Sambinha

Vim para serestar uma melodia, uma triste poesia do mendigo que bateu à porta. Vim porque precisava vir, a inspiração clamou-me os versos, mesmo que incertos e perdidos em uma telinha virtual. E estou para cantar, porque lá fora explode um silêncio de mentiras e covardias. Venho sambando, porque assim descanso meus pés das injurias pequeninas. Estive sorrindo, e ora sinto egoísta por cultivar a felicidade em dias de guerra. Cantarolando uma cantiga velha, dessas que só batem nas janelas dos amantes senis. Venho em paz, confusão já tem demais. Venho iludido, de que dias melhores engatinham pelo chão sujo da avenida. Trago em meus braços o carnaval, triste vendaval de quem prefere o bolero inglês. O samba é de raiz, de brasileiro inconformado com a discrepância social. Não toco techno trance ou electro-house, boto para arranhar um vinil antigo e vejo futebol. Sorria! Você não está na Bahia, mas esta no país da maravilha tropical. E vou terminando, não por cansaço, mas por mera distração. Estive perdido pelos becos escuros, mas vim iluminado pelo vil calor desse horror. Sinto-me bem, mesmo não caindo em desgraças por alguém. Por isso, peço que arranque este corpo sedento da cadeira e se junte a esse pobre falastrão! Espero-te com caixinha de fósforo, pandeiro, cavaquinho e violão.

Venha, e entre sem bater.

Bernardo Biagioni

Vin Rouge

Melhor que o sabor do vinho,
só o fato de poder ver a garrafa se esvaziando.

[Pela] boa noite,
Bernardo Biagioni

sábado, maio 05, 2007

Louco

Dizem por aí que Bernardo Biagioni está enlouquecendo.

E tem jeito de ficar normal?

Visitem esse cara: www.iliveinabunker.com
Manda demais.

Eu volto,
“Julinho da Adelaide”

quinta-feira, maio 03, 2007

Drink

Consuma meu corpo. Consuma bem, como quem vira num gole o resto de coca-cola numa latinha quase vazia. Sorva meus versos imaturos, de criança mal-criada revoltada com a professora. Trague meus pensamentos, e deixe a fumaça intoxicar o fumante passivo que me olha curioso. Beba-me a juventude, ou vestígio dela, que ora cisma em dar as caras por este corpo sedento. Usurpe minha alma, decepe-a, esquarteje as partes que lhe fazem gosto. Estou me entregando por inteiro, feito Cristo fez para a salvação dos homens. Deixo que entrem sem bater a porta, sem pedir senha ou pedido de identificação. Quero mesmo que entre, e me tome por inteiro. É proibido proibir, prego tanto a libertação de vossos corpos, jamais daria um passo atrás agora. Estou aqui pra ser pisado, questionado, não para ser elogiado. Quero que me conteste, quem sou eu para ficar falando de liberdade? Venha, venham todos, estou estendido na cruz esperando a primeira pedra a ser atirada.


[Reaja] Bernardo Biagioni

A Lamentável Trajetória de Patrick

Era pouco mais que 2:00 da madrugada quando eu cheguei no ponto de ônibus da Savassi, bairro tradicional da cidade de Belo Horizonte. Estava com um fiel amigo de fotografias de baixa qualidade (celular), Bruno Pimenta, e lamentávamos baixinho os probleminhas da vida.


Eis que chega cantarolando um samba antigo um velho conhecido, Patrick, 12, morador e adorador da favela "Morro do Papagaio". Conhecemos o Patrick em Junho do ano passado, ele estava em um sinal de trânsito perto de um grande shopping da região do Belvedere, bairro nobre da cidade. Na ocasião, convidamo-lo junto com seu irmão Ricardo, pouco mais velho, para andar nos nossos skates. Os garotos fizeram a maior festa, ficavam divididos entre os “carrinhos” e a bicicleta de um outro amigo nosso. O sorriso que cultivavam abertamente na face não deixava negar o quanto se divertiam, alimentava também a nossa alma um tanto quanto enferrujada.

Fiquei um bom tempo sem vê-los, ate que encontrei o Patrick fazendo malabarismo em um sinal de trânsito da Savassi. Ele jogava desordenadamente duas bolinhas para o alto, depois fazia o clássico gesto de agradecimento e vinha correndo em direção aos carros. Abri o vidro e fui logo o chamando pelo nome. Ele estranhou, e antes que eu pudesse lembrá-lo do memorável dia dos skates, o sinal abriu e meu tio arrancou o carro.

Alguns dias depois eu estava sentado em um bar e o vi passar correndo com alguns amigos. Só se ouvia da boca do Patrick "corre de menor, corre!" Atrás vinha o dono de uma padaria, bufando e parando aos poucos. Ele virou para a nossa mesa e desabafou enquanto tomava ar: "roubaram um pacote de chips na minha padaria, meninos filhos duma p***".

E fiquei um bom tempo sem vê-lo, sequer lembrava do rosto dele. Até que ontem eu o encontrei. Ele vinha na minha direção cantando o sambinha, e antes que estendesse as mãos para me pedir uns trocados eu lhe chamei pelo nome. Ele me olhou assustado, os olhos pretinhos e arregalados como na vez do sinal de trânsito. Para nossa surpresa, minha e do Bruno, ele cheirava uma garrafinha pet de 500ml, que abrigava um resto de cola. Já sentados no passeio, tentávamos lembrar ele do dia em que ele saiu com a gente. Não demorou muito.

Patrick largou a garrafa e abriu um sorriso que, com certeza, jamais vou esquecer. E dividido entre eu e Bruno, começou a recitar os fatos: "poxa, era um skate grandão assim oh" e com um olhar distante esticava as mãos para desenhar a sua saudade.

Ficamos um tempo com os clássicos sermões de quem se preocupa com um ente querido. E falávamos que ele tinha que largar a cola e estudar. Bruno perguntou o que ele preferia: uma garrafa cheia de cola ou um brinquedo. De novo ele mirou os olhos negros para um vácuo e começou a falar bem alto "um brinquedo, claro! Igual daqueles que tem no Mc Donalds.”

O Bruno tirou o celular do bolso e tirou algumas fotos do Patrick, ria baixinho enquanto falava: "vou provar para todo mundo que eu tenho um filho sim!" Patrick e seu amigo que havia chegado pouco depois ficaram enlouquecidos de poderem se ver em uma telinha tão pequena.

E sem mais nem menos ele levantou, olhou para os amigos e disse: vamos! Olhou para a gente e disse que ia dormir por ali mesmo que estava com muito sono para esperar o ônibus. Segurei a mão dele e busquei os seus olhos, mas estavam depositados no chão. Senti um aperto no peito, uma tristeza fria percorrendo cada espaço do meu corpo. Olhei para o Bruno e vi que ele sentia o mesmo. Pegamos o mesmo ônibus, mas não trocamos nem uma palavra sequer durante todo o caminho.

É essa a historia do Patrick, pelo menos até aqui. O final, os olhos dele vão escrever. Talvez com a ajuda de um pai alcoolizado ou de uma mãe escravizada pela sociedade. Ou talvez ainda por pessoas sensibilizadas com situações semelhantes a essa, como eu e o Bruno, que havemos de lutar de aqui em diante por pelo menos uma cidade melhor.

Lutemos.